Há muitos anos — em boa verdade, há várias décadas —, várias são as vozes (entre as quais me incluo) que têm chamado a atenção para o efeito devastador das telenovelas no tecido audiovisual português. Por três motivos básicos:
1 - a imposição de um modelo narrativo profundamente limitado e repetitivo;
2 - o condicionamento e contaminação das estruturas de produção, em especial as do cinema;
3 - enfim, a violência profissional e expressiva a que são sujeitos os actores, empurrados que são para um espaço de trabalho onde as alternativas quase não existem e onde, por isso mesmo, as suas qualidades são sistematicamente e ingloriamente anuladas.
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Para a demagogia televisiva dominante, esse tipo de intervenção tem sido tratado como uma peripécia caricata de "críticos" e "intelectuais" que menosprezam "aquilo que as pessoas querem". Quando confrontada com a necessidade de discutir o leque de ofertas apresentado aos espectadores — a começar, naturalmente, pela ocupação selvagem dos horários nobres —, tal demagogia recusa enfrentar a questão, como se a programação fosse uma emanação natural, alheia a qualquer responsabilidade humana.
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Aqui se regista, por isso, um fenómeno invulgar: um actor, José Fidalgo, vem dizer publicamente que "fazer só telenovelas estupidifica". Por um lado, importa lembrar que nunca nenhum adversário do poder devastador das telenovelas (entre os quais, repito, me incluo) utilizou este tipo de argumentação; por outro lado, é salutar verificar que, para além da terrível inércia de pensamento em que vive o mundo das telenovelas, ainda há quem, do seu interior, arrisque exprimir-se para além dos lugares-comuns de espírito tablóide. Em termos simples, este é um acontecimento histórico.