domingo, dezembro 04, 2011
Entrevistas de arquivo:
Owen Pallett (2006)
Em 2006 o músico canadiano Owen Pallett dava uma entrevista ao DN por ocasião da apresentação do segundo álbum do seu projecto Final Fantasy. Este texto foi originalmente publicado na revista 6ª, com o título “Confissões de uma máscara”.
Owen Palett é um dos mais contagiantes conversadores entre a nova geração de músicos. Música, livros, jogos de vídeo, cinema, o real e a fantasia, as paixões e os medos, habitam as suas palavras, que nos agarram e convencem. Canadiano, com vida até aqui feita pública por colaborações nos Arcade Fire ou Hidden Cameras, e por um promissor álbum de estreia editado no ano passado, acaba de editar o álbum com o qual vai fazer a diferença e inscrever, obrigatoriamente, o seu nome entre os feitos maiores de 2006. He Poos Clouds é um arrebatador depoimento na primeira pessoa por um músico dividido entre as mecânicas da pop e uma escola (que cada vez mais o atrai) na música erudita.
Este é um disco completamente diferente do que nos apresentou há um ano. O que aconteceu?
Sim, o disco é diferente, mas na essência a escrita de canções soa exactamente ao mesmo, mas é verdade que o gravámos de uma forma diferente.
Vê o disco como um ciclo de canções?
Creio que o posso dizer, sim. Vejo-o um pouco como os ciclos de canções antigos, como os de um Schubert ou Schumann. Tirei, inclusivamente, alguma inspiração do Dichterliebe de Schumann. No final desse ciclo ele apresentou uma canção na qual fala de todas as canções de amor sobre as quais escreveu e de como as vai juntar num mesmo caixão e depositar no fundo do oceano. Gosto dessa ideia. É o tipo de ideias que, mais habitualmente, encontramos em livros. Quando se escreve um livro de ficção como se tratasse de uma colecção de memórias, as personagens por vezes chegam àquele ponto da história no qual descobrem o que já se escreveu sobre elas, reflectindo sobre essas ideias e, eventualmente, mudando depois o curso dos acontecimentos. Essa é também uma ideia que me agrada. Uma ideia de interactividade entre as personagens e o tema central da sua história.
Gosta de criar personagens. As canções deste novo álbum estão cheias delas. Onde busca a inspiração para criar estas figuras?
Leio muito, mas creio que com este disco procurei ser mais explícito sobre quem são estas personagens, e sobre que ideias podemos reflectir com elas. São, de certa maneira, extensões de mim mesmo ou de pessoas que conheço. Na verdade, confesso que não quero mesmo escrever sobre ninguém que não eu mesmo…
É mais fácil escrever sobre nós mesmos através de personagens ficcionais?
Sim, porque é uma forma de fazer um discurso autobiográfico sem implicações concretas.
Em I’m Afraid of Japan, contudo, fala concretamente sobre Mishima…
É um dos meus autores de referência, de alguma forma, porque lhe dediquei algum tempo a dada altura. Mas tenho uma relação muito estranha com ele porque admiro muito a sua prosa, mas não gosto da sua política. Ao mesmo tempo sinto que a sua maneira de ver o mundo representa um momento de viragem na cultura gay contemporânea, com a qual também tenho uma relação de amor/ódio. Com Mishima tenho, além dessa relação de amor e ódio, uma vontade de o homenagear, mas também de o gozar.
Ainda há meses Rufus Wainwright dizia-se também sob uma relação de cepticismo com a cultura gay actual. Porque será?
Há muitas armadilhas nas quais podemos cair frequentemente. E dou por mim a cair nelas muitas vezes. São as armadilhas do melodrama, da tragédia. Tem a ver com a forma como se aborda as questões. E há outra realidade que me preocupa, mas que transcende a cultura gay, que é o suicídio. Tenho sentimentos muito fortes em redor desses domínios…
O suicídio assusta-o? Atrai-o?
É mais um fascínio pela morte, e pela relação entre a morte e a arte, a ideia do artista de vida tortuosa que muitas vezes pode ver a sua vida mergulhada em depressões como consequência da arte que está a criar. Essa é uma armadilha que quero evitar. E quando canto sobre este tipo de assuntos, quase parece que brinco com as ideias. Mas tenho de admitir que estas são ideias com enorme poder de atracção. Sobretudo a noção do artista que se auto-sacrifica.
É um espírito depressivo?
Por vezes, sim. Mas tento manter isso o mais longe possível da minha música.
O suicídio de Mishima é um dos factores que o atrai ou repele, nessa sua relação de amor e ódio com o escritor?
Desacordo completamente com ele. A canção fala na sua relação com a religião. Ele teve uma relação intermitente com o Budismo. Na tetralogia O Mar da Fertilidade ele redigiu um ciclo essencialmente centrado no budismo. Mas no último volume, que completou antes de morrer, refuta todas as ideias que tinha escrito no livro ao dizer que a personagem que reencarnava a dada altura no ciclo não era real, mas sim apenas a projecção da imaginação de uma outra personagem. Ou seja, nunca existiu… Como quem parece voltar as costas a tudo o que tinha até então escrito nesse épico. Mas no dia em que terminou o livro e o enviou ao editor, cometeu suicídio segundo um ritual tradicional. Ou seja, ele estava a passar um mau bocado a tentar saber se acreditava ou não. Mas ao mesmo tempo era como se não tivesse à sua frente uma outra fé possível. Isso interessa-me.
O disco cruza, depois, esse tipo de referências literárias com o universo dos jogos de computador!
Sim, com o Dungeons And Dragons. Porque implica também uma espécie de crença, de resto comum a toda a literatura de fantasia. Implica um sistema de crença, que não traduz uma fé explícita no real, claro. Mesmo assim as pessoas mantêm uma relação fiel com essa crença.
Podemos usar a fantasia como metáfora do real. Tolkien, por exemplo, retratou a Europa dominada pela Alemanha nazi em O Senhor dos Anéis…
Precisamente. Toda a sua maneira de negociar as ideias do seu mundo foi através da criação de um patamar de fantasia.
O que pensa da literatura de fantasia que hoje se faz. Houve uma explosão nessa área…
Sou um grande admirador de romances de fantasia, mas só gosto dos mesmo bons. Não gosto da fantasia de cordel. E tem havido muita, ultimamente. A verdade é que há poucos autores com capacidades literárias com vontade de aplicar a sua escrita a universos de fantasia. Talvez pensem que a escrita de fantasia não os realizaria como outros géneros literários o podem fazer. O mesmo acontece com realizadores de cinema. Poucos têm uma boa relação com a fantasia. Mas quando a têm, surgem por vezes coisas espantosas.
Porque acha que este mesmo recurso à fantasia, como metáfora, está particularmente arredado de muitos autores de música que hoje se faz.
Talvez tenha a ver com a própria história da música pop… Quando se estuda a história da pop não se fala de fantasia. Fala-se do que o John Lennon cantava. With love, from me to you… E coisas assim. E sempre que leio textos sobre música a falar de temas e autores vejo que sistematicamente se observa que os escritores de canções preferem abordar os grandes temas universais. A crítica musical até faz, por vezes, questão de procurar os exemplos mais invulgares de uma canção que fala sobre algo com o qual todos nos podemos relacionar. O John Lennon nunca escreveria sobre fantasia…
Mas esse universo da canção de autor, do cantautor mais precisamente, não parece ser bem o seu…
O que me interessa não é a canção perfeita. Procuro, até, a canção imperfeita. E é aí que o mundo da fantasia encaixa.
Nem parece gostar muito do conceito do instrumentista virtuoso…
É curioso, porque gosto da ideia do virtuoso. Mas ao mesmo tempo sou igualmente atraído por não-músicos que podem não ter virtuosidade musical enquanto instrumentistas, mas que podem ser donos de grandes ideias.
Uma herança punk? Boa ideia, mesmo se mal tocada?
Acredito nisso, sim. Acho que o punk tem pouca relevância em muita da música que se faz hoje em dia naquilo a que chamaria a “sociedade musical normal”… Veja-se o caso da Pitchfork… Admiro o trabalho que têm feito pela música e pela comunidade musical, mas a sua postura crítica é muito hierarquizada… Hoje as pessoas têm acesso a todos os discos. Com um computador qualquer um pode ouvir qualquer disco. O mundo está cheio de pessoas a criar e publicar os seus top 5 e top 10 da semana… E este tipo de codificação é muito não-punk… Mas apesar de saber que a minha música não tem nada de punk rock, em termos de forma, penso que tem mais a ver com o punk que muitas das bandas que hoje se classificam nessa área. Mas esta é uma visão muito pessoal.
O seu novo disco reflecte bastantes relações com espaços musicais exteriores à música popular. A música erudita, particularmente a contemporânea, começa a ganhar visibilidade entre os nomes com genealogia pop?
Não sei se é fundamental saber se o Burt Bacharah é mais influenciado por um Schumann ou Chopin… O que ele faz, tal como muitos outros o fazem, é captar elementos da música clássica e fazer deles algo relevante aos olhos da contemporaneidade. E sublinho que acho o Burt Bacharah tão importante como um Schumann ou Chopin! Estou mais preocupado com a forma como a música contemporânea tem sido apropriada. Há artistas que têm até nomes que são muito familiares, mas que na verdade muitos não compreendem. Há quem diga que os Velvet Underground ou os Strokes foram influenciados pelo minimalismo nova-iorquino. Mas isso parece-me uma leitura desbotada e fácil da verdade histórica desses elementos. Há quem fale em Philip Glass sempre que escuta elementos repetidos… O minimalismo nova-iorquino tem uma identidade muito característica e representa uma ideia bem distinta. Mas quando as pessoas ouvem repetições num disco pop com voz e falam imediatamente em minimalismo, estão a passar ao lado de qualquer coisa… O mesmo acontece com compositores pós-modernistas. As pessoas falam e falam de Stochkausen… Gosto muito de Stockhausen, mas só vejo um músico pop a ser hoje genuinamente influenciado por Stockhausen. E chama-se Scott Walker. Além dele tenho de me esforçar muito para verificar essas influências noutros músicos, alguns deles existindo, é verdade, nas áreas da música electrónica. Como o Klaus Schultze, por exemplo…
Sente-se integrado em algum espaço musical partilhado por outros músicos, ou acredita que segue, já, um caminho pessoal e distinto de tudo o resto?
Sou muitas vezes comparado a outros músicos, sobretudo por semelhanças cosméticas. Sobretudo ao Patrick Wolf, Sufjan Stevens e Andrew Bird. Fazem-me perguntas sobre eles a toda a hora! Ao princípio sentia-me como se estivesse em competição com eles. Como se atrevem?... (risos) Mas já ultrapassei essa carga negativa. Não que não goste da sua música, mas porque não vejo que a minha música se relacione com a que fazem. Estou mais próximo do punk… Em Toronto há hoje muitas bandas com as quais sinto muitas afinidades. Seguem uma estética do it yourself e colocam mais ênfase no conceito, acima da execução. Mas ao mesmo tempo tenho de reconhecer que há em mim raízes naturais numa educação feita na música clássica. E passo horas e horas a formular as progressões de acordes mais correctas.
No passado chegou mesmo a escrever óperas. Não as editou…
Não, estão no meu escritório, em papel. Uma delas até teve transmissão pela televisão no Canadá. Mas a segunda nem sequer chegou ao palco. Foi um projecto universitário.
Depois deste disco sente mais vontade ainda em afastar-se da escrita pop com a qual lida, sobretudo, quando toca com os Arcade Fire ou Hidden Cameras?
Sim, é verdade. Assim que terminei a gravação, verificando a facilidade e tranquilidade com que o disco nasceu, confirmando a maneira como tinha conseguido controlar todo o processo, fiquei satisfeito. E mesmo não gostando de repetir uma ideia, já estou a pensar numa eventual sequela de He Poos Clouds…
O que quis dizer com este título invulgar?
Bom… Apesar de ter um processo criativo intenso, não quero que as pessoas me levem demasiado a sério. Na maior parte das vezes o que faço tem um ângulo satírico. Acredito mais nas pessoas que não se levam demasiado a sério. Veja-se o caso do Jamie Stewart dos Xiu Xiu. Foi a primeira pessoa que senti que era capaz de cantar ideias sobre relações, depressão e outros temas e ser convincente porque as aborda de uma maneira muito directa e aparentemente feita de lugares comuns. Acredito que atrás de cada piada há qualquer coisa muito séria. Depois, não sei se é cinismo da minha parte, mas quando uma pessoa me diz uma coisa com demasiada certeza, penso sempre que na verdade quer dizer o contrário… Com a música que faço tento mostrar às pessoas que tenho intenções sérias. E por isso não quero que me tomem demasiado a sério…