quinta-feira, dezembro 08, 2011
'Cinderella' (1950)
por Carlos Conceição
Este mês pedimos a uma série de amigos que nos falassem do “seu” filme da Disney. Hoje recordamos Cinderella, longa-metragem de 1950 que aqui é evocada por Carlos Conceição, realizador de cinema (e de telediscos para os Pop Dell'Arte e Mundo Cão). Um muito obrigado ao Carlos pela colaboração.
Na televisão, uma jovem angolana diz que se prostitui porque quer comprar "boas roupas, bons sapatos e verniz de marca para as unhas". A primeira coisa que me vem à cabeça é aquela desgraçada do conto de Andersen que acende fósforos para se aquecer. Solto uma gargalhada que acorda a holandesa do andar de cima. Isto é um milagre literário: desgraças como as fictícias só por baixo das burqas Chanel que estão à venda no Ebay. A minha gargalhada acaba em esgar vomitório por vergonha de ser tão moralista. Vejo um filme snuff para desanuviar.
Isto porque há dias fiquei a saber que ainda havia televisão pública em Portugal e que ela está cheia de Cinderelas de todos os sexos. Não me surpreende porque também as vejo nos transportes públicos e cada vez mais é isso que a televisão nacional é. Mas por trás dos reality shows em que se entra coxo e se sai raínha, está a verdadeira essência da humanidade (digo eu como se soubesse).
Desde sempre gostamos de assistir a um bom make over. Até Cristo curava a lepra e transformava água em vinho. Mas mais notável é o voyeurismo com que nos projectamos na transformação dos outros, tirando dela a inspiração e a raiva de que precisamos para existir, como nos contos de fadas.
Com a Cinderella da Disney (1950) parece que nós, o público, assumimos a catarse de ver pessoas enxovalhadas até ao degredo. Derrotismo? Vivemos no limiar da revolta e todos os dias pensamos em como explodir, por qual das razões e para cima de quem. No mal alheio orgulhamo-nos da calma que nos mantem quietos, a vociferar conselhos. Mas quando nos afecta pensamos na Cinderela. Por um lado admiramos a calma que depois se transforma em euromilhões sentimental, por outro temos uma certa redenção na desgraça dela - por mais no esterco que estejamos, há (?) quem esteja mais abaixo.
A diferença entre a Cinderela da Disney e as anteriores (Grimm, Perrault, Giambattista Basile...) é que esta leva na cara e depois canta duetos com pássaros-costureiros, enquanto as outras tentavam matar-se. Se não chamarmos a isto um milagre pré-prozac, nada mais o será. Ela é uma embaixada de esperança, um manequim de propaganda que nos ensina a não reclamar. Ela é a promessa de um metro quadrado no céu.
Ela é o tipo de pessoa que muita gente gostaria de adicionar ao facebook: loira, discreta, deslumbrada, ligeiramente pãozinho-sem-sal - embora assim soe a 80% das pessoas que lá temos. Ela é uma espécie de mártir: por maior que seja o nosso sofrimento, há alguém no fundo do nosso consciente que passou por pior, o que nos coloca numa posição delicada em que parece mal lamentar ou sofrer mais. Ela é um semi-círculo no hula-hoop da história; de um lado os sapos que engole e a virtude que transpira, do outro uma labrega num reality show que desata à porrada quando lhe dizem que não gosta de sexo (por medo de represálias estou a citar pessoas antigas que já devem ter morrido).
Há uma palavra muito boa para quem passe tão calado por estas intempéries: tanso (a). E no entanto ela é a derradeira utopia, a star definitiva, sentada junto à lareira a escovar o personal branding. Cinderela, artista sem obra. Animal social. Wannabe hasbeen, que antes de ser já tinha sido. É tão comunicativa que até fala com os ratos. Quem não quer ter uma amiga assim que levante o braço.