Este mês pedimos a uma série de amigos que nos falassem do “seu” filme da Disney. Hoje recordamos Caixinha de Supresas, longa-metragem de 1944 que aqui é evocada por Luís Salvado, da Time Out e colaborador da revista Premiere. Um muito obrigado ao Luís pela colaboração.
No cânone dos grandes filmes de Walt Disney, as cinco primeiras longas-metragens totalmente animadas, estreadas entre 1937 e 1942, são um cume aparentemente inultrapassável: Branca de Neve e os Sete Anões, Pinóquio, Fantasia, Dumbo e Bambi. Para os conhecedores, estes filmes são considerados os “big five”. Logo a seguir, em 1944, há uma fita pouco reconhecida que merecia juntar-se ao lote: The Three Caballeros [que entre nós conheceu o título Caixinha de Surpresas]. Esta incursão pela América Latina com o norte-americano Donald, o brasileiro Zé Carioca e o mexicano Panchito é um dos filmes mais revolucionários e irreverentes do estúdio, coloca Disney na vanguarda de muita coisa e devia ser revisto com outros olhos: o humor vertiginoso e anárquico e as referências sexuais (tudo contrário à imagem da Disney) pedem meças a Tex Avery, o grafismo estilizado surge antes de ser moda no meio, a integração imagem real-animação faz-se a uma escala que só se repetiria 20 anos depois com Mary Poppins e, principalmente, o surrealismo crescente e cada vez mais demencial tornam o filme diferente de tudo o que se fez na época à excepção de Fantasia, com um grau de psicadelismo que só nos anos 60 seria devidamente reconhecido. Para quem acha que Disney era um conservador, eis uma surpresa a considerar.
Mas acima de todas as irreverências, The Three Caballeros é um filme sobre a festa da música, da cor e da animação, com uma imagem idealizada da América Latina. Ao som dos inesquecíveis Baía, Os Quindins de Yayá, Solamente Una Vez ou México, é todo um desfile de imagens delirantes e inesquecíveis que nos passa à frente dos olhos de forma inicialmente comedida mas depois cada vez mais desenfreada e imparável, com um ponto alto na cena em que Donald e Zé Carioca dançam com uma Aurora Miranda de carne e osso pelas ruas de uma Baía em formato de livro pop up.
Pessoalmente, Caixinha de Surpresas, visto no inevitável cinema Caleidoscópio já nos anos 80, além de uma festa para os sentidos, foi uma abertura de olhos para lado verdadeiramente surreal da animação e mais uma comprovação de que a imagem conservadora de Disney então defendida pelos bem-pensantes era um facilitismo disparatado e inconsequente. Walt Disney tem filmes melhores (Pinóquio é insuperável) mas nenhum mais demencial, vertiginoso e ainda assim secreto do que este.