Mês Kate Bush - 17
Ao longo deste mês especial dedicado a Kate Bush estamos a apresentar aqui algumas visões pessoais sobre títulos da sua discografia. Hoje é Miguel Simões, autor do blogue Anita Vai ao Mel, quem apresenta o álbum de 1982 The Dreaming.
Injustamente ou não, é difícil pensar hoje The Dreaming sem esboçar sorrisos de nostalgia perante a evolução da indústria discográfica. A história de Kate Bush é toda ela cheia de apostas milionárias e votos de confiança e quando a autora lançou o seu primeiro álbum totalmente conduzido pela própria – modus operandi que se mantém hoje – os receios da editora foram totalmente justificados: The Dreaming revelou-se o álbum excêntrico e semi-inacessivel que muitos temiam caso lhe fosse dada a liberdade criativa que procurava desde o início.
Mas esta foi uma daquelas histórias que acabou bem, apesar do casting aterrador das técnicas de captação de sons de campo e posterior sampling completamente inovadoras para a pop mainstream da altura; apesar do recurso a didgeridoos e outros instrumentos artesanais, assim como a compositores de música tradicional irlandesa; acima de tudo, apesar da domesticação do seu registo de assinatura, com a voz mais estacionada nos graves e o piano num presente mas efectivo segundo plano. A menina-prodígio de voz estridente a cantar sonhos de Inverno ao piano deu lugar a uma mulher em total controlo da sua loucura, que apresentava aqui um leque de canções radicalmente diferentes em temática e ritmo, letras sob o ponto de vista de um inimigo mortal (Pull Out The Pin) e sobre a aceitação da demência (Suspended In Gaffa, Get Out Of My House), composições com estruturas em constante mutação e difíceis de captar à primeira audição.
O insucesso dos singles espelhou o relativo flop de vendas, com crítica e público a dividirem-se sobre aquele que se viria a confirmar o grande momento de viragem na maturação da carreira de Kate Bush. Esta abertura aos caos, ao sampling e em certa medida à world music via Peter Gabriel viria a dar-nos entre outros um Hounds Of Love, mais acessível mas talhado nos mesmos moldes. E o tempo acabou mesmo por fazer justiça a The Dreaming, que pela sua frescura e coragem soa hoje menos datado que alguns dos seus trabalhos mais recentes.
Apesar do susto, a editora acabou por lhe confiar ainda mais dinheiro e liberdade para o próximo álbum, coisa que hoje seria impensável até para a mais pequena independente. De facto, o futuro próximo dar-lhe-ia alguns dos maiores sucessos da sua carreira mas neste momento, Kate Bush era a mais sortuda eremita do rock.