Em Habemus Papam/Temos Papa, Nanni Moretti formula um desafio invulgar: colocar em cena um Papa que não se considera à altura da missão para que foi chamado — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 de Novembro), com o título 'Para além de todas as crenças'.
Como colocar em cena a personagem de um Papa? Um Papa fictício, mas dos nossos dias? Em 2007, no seu episódio de Chacun son Cinéma (filme comemorativo da 60ª edição do Festival de Cannes), Manoel de Oliveira deu uma resposta deliciosa: o Papa era uma figura distante das atribulações do mundo, num tom de alegre desprendimento que o intérprete, Michel Piccoli, assumia com evidente cumplicidade.
Agora, numa feliz coincidência cinéfila, reencontramos Piccoli a interpretar o Papa do filme de Nanni Moretti. Mas Temos Papa não é exactamente uma comédia. O seu humor coexiste com uma peculiar intensidade dramática: o Papa é, aqui, uma personagem que não encarna no seu próprio estatuto, já que se considera irremediavelmente limitado para cumprir a missão que Deus e os seus pares lhe atribuíram. O tema vital de Temos Papa é o medo.
Em boa verdade, Piccoli interpreta um típico anti-herói de Moretti. Lembremos o militante amnésico de Palombella Rossa (1989), o cidadão errante de Querido Diário (1993) ou o pai angustiado de O Quarto do Filho (2001). Aquilo que os une era o mesmo embate com um “destino” que excede os seus poderes, sendo todos interpretados pelo próprio Moretti, num jogo de espelhos que, em Querido Diário, envolve claras reminiscências autobiográficas. Desta vez, Moretti assume a figura do psicanalista convocado para avaliar a depressão do novo Papa: o autor coloca-se do lado de quem escuta, dando a ver a fragilidade de qualquer transcendência com que os humanos possam consolar-se. Quando o filme passou em Cannes, houve quem ficasse desiludido pelo facto de Temos Papa não ser um filme “contra” a religião. Na verdade, Moretti filma a solidão radical do ser humano. E isso está para além de qualquer crença.