Na sua edição de hoje, o jornal Correio da Manhã faz manchete com o facto de o ministro Mota Soares ter passado a usar um automóvel Audi, de 86 mil euros, ele que ficou conhecido por se manter fiel ao seu transporte de duas rodas (uma Vespa). Na prática, esta é uma "denúncia" que satisfaz o estado de espírito mediático em que o país vive (ou é obrigado a viver). De duas maneiras:
1 - promove a noção revanchista segundo a qual "os políticos são todos iguais" e igualmente "irresponsáveis";
2 - permite relançar as culpas sobre o fantasma de José Sócrates, até porque, diz a notícia, o próprio ministro prefere assumir-se como marioneta sem vontade política, considerando que se trata de uma "herança" do Governo anterior.
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Na prática, apenas se multiplica o infantilismo com que, de um modo geral, a ideologia mediática dominante trata o cidadão comum. Primeiro, quiseram convencer-nos que o facto de existir um ministro que usava uma Vespa era um fenómeno transcendente e de que nos devíamos orgulhar; agora, ficamos a saber que, afinal, os problemas de fundo que o país enfrenta seriam bem diferentes se não se tivessem gasto 86 mil euros num automóvel...
É uma questão de escala, antes do mais. Porque é que o automóvel de Mota Soares é um drama nacional, enquanto os 645 milhões de euros dos estádios do Euro2004 foram esquecidos em nome da "auto-estima" e outras banalidades postas a circular pelo discurso moralista de Luís Filipe Scolari?
Provavelmente, o simples bom senso recomendaria que o ministro defendesse a sua imagem (e, já agora, a sua segurança) investindo num outro modelo de automóvel e, sobretudo, que não fosse mais um a transferir para os "outros" a lógica das suas próprias opções. Ainda assim, a demissão intelectual de Mota Soares é um detalhe de secundaríssima importância. O que aqui se detecta, uma vez mais, é o facto de já não nos deixarem viver, a não ser em regime de permanente e agressiva fulanização.
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Tornou-se difícil encontrar notícias: predominam os autos de fé. A cidadania para que nos convocam consiste apenas em saber qual a próxima figura a ser publicamente "decapitada". Que se espera, então, de nós? Que interpretemos o papel de multidão ululante.