domingo, novembro 27, 2011

Entrevistas de arquivo:
Michael Cunningham (2005)

 
Em 2005 esta entrevista com Michael Cunningham foi apresentada nas páginas do DN, numa altura em que entre nós era publicado o seu livro Dias Exemplares.

Neste livro a presença e as palavras de Walt Whitman acompanham as três situações que narra. Porque o trouxe para estas histórias?
Ele está para este livro um pouco como a banda sonora de Philip Glass n’As Horas, ou seja, é uma forma de ligação entre as histórias. Mas é também um complemento e um contraponto entre elas. Eu escrevi três histórias sobre uma América sombria e difícil. E o grande poema de Whitman, Folhas de Erva, nasceu numa altura em que a América parecia a caminho de se transformar a nação mais generosa, abundante e democrática alguma vez vista. Eu estava assim, no presente, a escrever sobre um sonho que acabou mal. E uso-o como a voz do sonho quando ainda o era. Uma voz de esperança... Porque acredito que, enquanto houver uma pessoa viva, as coisas podem sempre melhorar um dia...

Há bombistas-suicidas que, numa das histórias, citam Whitman como ponte para um mundo melhor...
Esperam ir para um mundo melhor. E sinceramente creio que os terroristas devem sentir o mesmo. Duvido que muito poucos terroristas que eventualmente tenham sobrevivido a este tipo de atentados cheguem à noite a casa e pensem: “mais um dia de maldade para o mundo”... Não creio que o George W. Bush pense também assim... As pessoas fazem o que pensam que é certo, mesmo que isso seja terrível e destrutivo.

Vê o seu livro como uma reflexão sobre os pesadelos da América do presente, apesar de conter uma história no passado e uma no futuro?
Seria difícil olhar para a América de hoje e dizer “que bem que isto está a correr!” Não está. Como escritor posso escrever apenas sobre o que vejo. E não me vejo a escrever sobre a América do sonho feito realidade, mas a do sonho que se fez pesadelo.

No prólogo fala sobre a necessidade de ser preciso quando se escreve sobre o passado. Usa a ficção como um olhar pessoal sobre o real?
Penso dessa forma, sim. Há opções que escolho como romancista, outras que tomo porque fazem parte da minha natureza. Acho a realidade difícil, mas interminavelmente interessante.

Experimenta também a ficção científica na terceira história. Como se preparou para esse tipo de registo menos familiar em si?
Foi a parte mais difícil de escrever, e curiosamente as pessoas perguntam-se se me diverti, porque parece-lhes ter sido a mais fácil... A boa ficção científica deve ser divertida. É quase sempre satírica. E tentei, assim, respeitar essas ideias, com uma piada ou outra. Mas foi-me difícil inventar um mundo. E sei que há um risco de parecer ridículo.

Mas não o fez como forma alternativa de comentar o mundo real?
Obviamente. Toda a boa ficção científica é uma extensão do mundo real. Comenta os possíveis destinos do mundo. E o mundo que imagino é uma América em declínio. Esta já não é uma potência. Metade está tão poluída que se tornou inabitável, e a outra está dominada por fundamentalistas religiosos e corporações. E com sistemas de informação tão dominados, que ninguém sabe o que se passa. Não é o futuro inevitável da América. Mas nada na América de hoje faz este futuro imaginaldo algo implausível. Mas gostava que não o fosse.

Há marcas de uma cidade que viveu o 11 de Setembro no seu livro. Até mesmo na Nova Iorque do século XIX, na cena em que as costureiras se lançam das janelas de uma fábrica a arder [o que aconteceu, de facto]...
Foi intencional, sim. Este é um livro sobre o admirável mundo novo que começou com a industrialização, a mecanização, a possibilidade de construir prédios altos que podem arder. A culpa não é das máquinas. E hoje vivemos num mundo em que há prédios de cem andares nos quais pode embater um avião... Mas não diria que vivemos sob ameaças sem precedentes. No passado falou-se várias vezes de vário fins do mundo. Mas é verdade que estamos progressivamente mais nervosos à medida que o tempo avança. E temos motivos para estar.

Apesar destes retratos de pesadelo, como vê Nova Iorque no contexto da América actual?
Foi em Nova Iorque que os atentados de 11 de Setembro aconteceram e, nas últimas eleições, foi claramente uma cidade anti-Bush e contra o ataque ao Iraque. Mas foi no Indiana, onde não cairam aviões com terroristas, que as pessoas se sentiram mais ameaçadas e, assim, a vontade de os matar antes que nos matem a nós.

Espera que Nova Iorque seja exemplo num processo de reinvenção de modelos para uma nova América?
Tenho toda a espécie de esperanças. Mas não sei se Nova Iorque tem mais esse estatuto. Muitos americanos são fundamentalistas religiosos e vivem em lugares onde nunca viram alguém diferente de si. Os americanos, e não só os americanos, são perigosamente desinformados e pouco cultos. 47 por cento da população americana acredita que foi Saddam Hussein quem mandou atacar as torres gémeas. E_acreditam que o que se está a fazer é ir atrás de quem atacou os americanos.

No passado disse que uma das suas missões como escritor era evitar que homens como Bush chegassem à Casa Branca. Acha que fracassou?
É claro que esperamos que a nossa escrita (ou pintura, ou música) tenha um efeito político sobre o mundo. Mas não nos enganemos... Alguém acredita que Dick Cheney entre na Sala Oval, com o meu livro na mão e diga: “Sr. Presidente, li este romance de Michael Cunningham e senti que agimos mal!”... Se queremos de facto a mudança, devemos fazer o nosso trabalho bem feito e depois talvez comprometer-nos pessoalmente com acções políticas concretas.

O sucesso de As Horas mudou muito a sua vida?
Passei a estar mais ocupado, e mais nervoso. Depois de tantos anos ignorado, o telefone começou a tocar e os emails a chegar... Seria um disparate queixar-me, mas foi quase excessivo. E quando se tem um sucesso desta amplitude temos de aceitar que o próximo livro pode ser mal recebido por algumas pessoas e algumas más críticas, independentemente do que escreva...

E isso desperta ansiedades?
Sim, algumas, mas ultrapassamo-las. Se 20 anos de má sorte não me deitaram abaixo, porque não resistir a um acesso de boa sorte? E_a dada altura concluí que esta visibilidade só pode ser usada em favor de escrita mais arriscada. sO sucesso às vezes é nocivo para muitos escritore, porque de repente alcança-se algo que se não quer perder. Então fica-se cauteloso. E a cautela é inimiga da arte.

Que lhe pareceram as adaptações ao cinema dos seus romances?
Ambas foram adaptações muito boas. A diferença esteve no facto de As Horas ter sido um sucesso internacional, e de Uma Casa No Fim do Mundo ter sido visto por... 17 pessoas. E não fez dinheiro algum. Mas as coisas são assim mesmo. De resto, ninguém esperava que As Horas, livro ou filme, fosse um êxito. Quando entreguei o livro ao editor, ele agarrou-o, olhou para mim e disse:_“Virginia Woolf? O que queres fazer com isto?” Pensámos que ia vender umas mil cópias e seguir depois, com a dignidade possível, para a mesa das sobras.

Dias Exemplares nasceu depois de toda essa agitação amansada?
Na verdade tive a ideia para este livro e de As Horas quase ao mesmo tempo. E tive de escolher qual escreveria primeiro. Vi que tinha então 43 anos, a mesma idade que Virginia Woolf tinha quando escreveu Mrs. Dalloway. Tomei essa pista como um sinal, e escrevi As Horas.

Na primeira das histórias de Dias Exemplares, o jovem protagonista crê numa vida depois da morte para o irmão. Acredita na transcendência?
Tenho muitas dúvidas sobre se há alguma coisa depois da morte. Suspeito que algo de nós continua, mas não é a nossa personalidade, não somos nós. Tenho a ideia de que continuamos de uma outra forma que não é pessoal, e que na nossa forma presente não podemos contemplar. Não me imagino de asas para a eternidade, nem no inferno, o que até era mais provável. E não sei se é isso que queria... Todos queremos acreditar num sentido de personalidade, a que os cristãos chamam alma, que acredito que sobreviva. O livro, sendo sobre a América, é mais sobre um sentido de religiosidade que eu necessariamente não abraço. Não se pode escrever sobre a América sem falar de religião.

Teme a morte?
Sinto que uma das missões como seres humanos é tentar derrotar o medo da morte. É uma das coisas que nos distingue dos demais mamíferos. Um gato julga que vai viver para sempre... Somos amaldiçoados e abençoados com a ideia que a vida acaba... Mas em vez de vivermos em terror, devemos aproveitar o máximo.

Teve Virginia Woolf n’As Horas. Agora Whitman. Vai precisar de outro escritor no próximo livro?
Não. É como as mulheres a fazer bolos n’As Horas e no Uma Casa No Fim Do Mundo. Só faço essas coisas duas vezes. Não me repito mais... É a minha conta!