domingo, novembro 20, 2011

E 'Satyagraha' renasceu outra vez...


Foi certamente um dos momentos do ano. E que bela casa praticamente cheia para assistir, em directo, numa transmissão sem falhas, uma belíssima visão da ópera Satyagraha de Philip Glass!

Composta após Einstein On The Beach, sob um desfio de criar uma obra para palco mas sob os recursos “tradicionais” da ópera (leia-se orquestra, cantores líricos e coro), Satyagraha reflecte características de uma etapa que a música de Philip Glass viveu em inícios da década de 80. Abrindo as portas à demanda de um certo lirismo (que alcançaria em pleno por alturas de La Belle et La Bête, já nos anos 90), Satyagraha representa, juntamente com obras como as óperas Akhnathen e Civil Wars (na parte que corresponde ao compositor), ao bailado In The Upper Room ou a bandas sonoras como Mishima ou Thin Blue Line, o encetar da exploração do potencial que uma orquestra permite alcançar, seguindo pistas que, herdando as conquistas de uma linguagem minimalista firmada nos anos 60 e 70, começara a procurar novos caminhos através de trabalhos para o seu ensemble. Podemos reconhecer em obras como Glassworks ou, mais ainda, a música do soberbo Koyaanisqatsi, o ponto de partida para a construção musical desta sua primeira ópera “a sério” (nas palavras do homem que comandava a De Nederlandse Opera e colocou este desafio nas mãos de Glass). Apesar de um predomínio de arias cantadas, algumas ainda hoje entre os melhores momentos do repertório operático de Philip Glass há cenas que exploram, mais que o canto, a utilização da voz como elemento central na definição dos elementos que constituem os módulos que, repetidos (mas nunca iguais, sempre discretamente transformados), desenham a evolução da música.

A versão gravada (e editada originalmente em 1985 pela CBS Masterworks) é contudo paradigma difícil de ultrapassar quando chega a hora de comparar interpretações. E por magnífica que fosse a prestação da orquestra e dos coros, a voz do protagonista não repete o ânimo e fôlego de Douglas Perry, o tenor que pela primeira vez deu vida a esta visão de Ghandi em 1980 (não que tenha estado mal, mas o termo de comparação é de um patamar maior). O restante elenco esteve à altura das solicitações de uma obra vocalmente exigente.

O melhor da produção aconteceu mesmo no plano da encenação, trabalho de composição de elementos cénicos, figurinos e cenografia. Projectada num intervalo de tempo entre 1893 e 1914, a narrativa descobre, na cena de abertura, um jovem Ghandi ainda em trajes ocidentais, as demais figuras revelando roupas que não enganam o calendário apontado pelo libreto. Mas é logo aí que o realismo que essas referencias marcam abre primeira cedência a jogos de construção de sugestões, quer através da construção (em palco) de figuras animadas por um grupo de profissionais das artes performativas, dos fantoches (família cabeçudos) que surgem mais adiante ou dos golpes de asa cénicos que ora usam folhas de jornais, fita cola ou cabides para dar corpo à construção de uma narrativa que convida o espectador a somar ideias. De resto resultou a opção de não empregar a tradicional legendagem perante uma obra cantada em sânscrito e na qual os sons e intenções marcam mais que uma eventual leitura de um texto que não tem intenções narrativas, antes de construção de um contexto. Projeções de frases, plavras-chave e imagens em movimento foram por isso suficientes para o definir de uma trama que, em três actos, transforma o jovem advogado no Mahatma que iria em breve mudar os destinos do seu povo.

Encenação do nosso tempo, esta visão de Satyagraha encontra forma plasticamente interessante de arrumar em cena as figuras que dão nome a cada um dos três actos (e que não têm qualquer participação vocal, apenas presencial). É particularmente curiosa a imagem de [Martin Luther] King, a figura-chave do terceiro acto, numa silhueta que parece mais aludir à figura de Obama que à do histórico líder da luta pelos direitos civis na América dos anos 60. Como que se, afinal, cada encenação de uma ópera procure, mais que o contar de uma história, enquadrá-la no seu tempo.