De que falamos quando falamos de Steve Jobs? Como reconhecer (e compreender) os efeitos da revolução informática (e emocional) que ele liderou? – este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 Outubro), com o título 'O legado paradoxal de Steve Jobs'.
Há qualquer coisa de patético no coro de admiração beata que se colou à notícia da morte de Steve Jobs. E não se trata, entenda-se, de banalizar a importância do seu legado tecnológico ou a contundência do seu génio visionário. Trata-se, isso sim, de observar como os media vivem dominados pela mais primitiva crença “sociológica”: os meandros das técnicas seriam uma espécie de paraíso dos artesãos mais obsessivos (geeks), desligados de todas as formas de percepção do mundo.
Lembremos o óbvio: Steve Jobs foi um protagonista de um complexo processo de alteração dos paradigmas cognitivos, tanto mais perturbante quanto ainda o estamos a viver, sendo impossível contemplá-lo a partir de um qualquer “exterior”. Assim, desde os primeiros iMac aos recentes iPad, não podemos reduzir a sensualidade que se reconhece aos diversos objectos fabricados pela Apple ao mero talento dos seus designers. Para além dessa sensualidade (e, sobretudo, através dela), estamos a viver uma profunda alteração dos nossos métodos de conhecimento, dos limites que atribuímos àquilo que chamamos “realidade” e, last but not least, do regime de prazer cada vez mais associado a todos os impulsos individuais de consumo.
Nesta perspectiva, com as suas centenas (ou milhares) de músicas incorporadas, o iPod (lançado há quase dez anos, a 10 de Novembro de 2001) emerge como símbolo de uma nova civilização, ou melhor, de uma nova relação entre indivíduo e valores civilizacionais. A sua performance está muito para além da “privatização” da escuta musical, tendo afinal muito pouco a ver com a clássica utilização de auscultadores: em boa verdade, o iPod pressupõe (ou induz) um corte simbólico com a realidade circundante, agora reduzida a cenário “virtual” de uma experiência exclusivamente interior.
Não deixa de ser irónico (e, de algum modo, revelador) que os estúdios Pixar, adquiridos por Steve Jobs em 1986, tenham desencadeado a sua revolução na animação cinematográfica a partir de um filme como Toy Story (1995). De acordo com a apreciação mais corrente, a sua história teria como motor o facto de os brinquedos viverem “escondidos” dos seres humanos, não revelando a vida interior da sua comunidade. O certo é que há em Toy Story um dispositivo paradoxal: na impossibilidade de nos identificarmos com os humanos (que, de facto, não vêem nada do que está a acontecer e funcionam como meros figurantes), é nos brinquedos que encontramos as ansiedades e emoções em que nos podemos projectar. E que vivem eles? Um drama tão visceral quanto contemporâneo. A saber: a ameaça de decomposição da sua realidade tradicional e familiar. A personagem de Buzz Lightyear é mesmo um brinquedo/astronauta que tem de superar o trauma de descobrir que não é um astronauta, mas apenas um... brinquedo. São bizarras histórias de solidão que, certamente não por acaso, partilhamos com tanto carinho.