domingo, outubro 02, 2011

"Futebolês"

RENÉ MAGRITTE
Le Tombeau des Lutteurs, 1960
Quando escutamos alguns comentários dos directos de jogos de futebol, fica a dúvida: quem é que, em televisão, ainda escuta aquilo que lá se diz? – este texto foi publicado no Diário de Notícias (30 Setembro), com o título 'Veleidades futebolísticas'.

Os comentadores dos directos de jogos de futebol constituem uma das principais forças culturais deste país. Mais do que António Lobo Antunes, Manoel de Oliveira ou Paula Rego. O assunto é demasiado sério para ser confundido com qualquer forma de ironia. Porquê? Porque através do seu gigantesco tempo de antena, celebram uma determinada visão do mundo, das relações humanas e respectivos valores.
Como? Desde logo pela dicotomia entre Bem e Mal com que conseguem essa coisa prodigiosa que é detectar a “justiça” dos resultados (cujo fundamento filosófico e legal permanece omisso). Depois, porque são os únicos que continuam a conferir à palavra “trabalho” (a equipa “trabalhou” muito bem) uma dimensão redentora que desapareceu quase por completo do espaço social. Enfim, para lá da crueldade dos tempos, atrevem-se a descrever as proezas de jogadores e equipas a partir de um conceito épico de “sofrimento” (“soubemos sofrer”, confirmam por vezes os treinadores).
Infelizmente, a maioria não mostra qualquer disponibilidade afectiva ou intelectual para pensar o lugar social das suas intervenções. Mas será isso razão para dispensar alguma vigilância do gosto de bem falar português? Já aqui o escrevi e repito (contra mim, se for caso disso): em televisão, a fluência de qualquer discurso é uma tarefa árdua, sendo inevitável cometer erros que, quando avaliados a posteriori, parecem tão absurdos quanto impossíveis. Em todo o caso, a própria comunidade profissional tem interesse em estar atenta a tais erros, se possível trabalhando (!) para os corrigir.
Exemplo que se renova: já não parece haver muita gente preocupada com o facto de “veleidade” ter a ver com uma vontade inútil ou um assomo de presunção (por exemplo, quando se “tem a veleidade” de concretizar qualquer coisa que está acima dos seus recursos ou talentos...). Assim, já tínhamos ouvido a palavra usada como se significasse “hipótese” (“não deu qualquer veleidade” ao adversário). Mas agora parece significar também “dificuldade” (a equipa “não iria ter qualquer veleidade” para ganhar o jogo). Já ninguém escuta? Já ninguém se escuta?