2001: Uma Odisseia no Espaço (1968), de Stanley Kubrick |
Não há instrumento mais cultural (isto é, instigador de valores e contra-valores) que a televisão... Mas a televisão tenta fazer crer que a cultura são os outros — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 Setembro), com o título 'A palavra "cultura"'.
A televisão portuguesa teme a palavra “cultura”. A maior parte das vezes utiliza-a como instrumento de um perverso exercício de repulsa e integração. Assim, a televisão tende a colocar-se fora da “cultura”, definindo a actividade cultural como uma curiosidade exótica que “outros” praticam. Ou seja: coisas esotéricas e muito estranhas como o “bailado” ou a “ópera” são, por certo, respeitáveis exercícios culturais; a televisão evita confundir-se com elas, mas celebra-as sempre, por vezes chegando ao luxo de as difundir.
Ao fazê-lo, põe a circular uma lógica de auto-satisfação que a maior parte dos elementos da classe política classifica, heroicamente, de serviço público: “Não temos nada a ver com isso, mas até o mostramos” (se possível fora de horas, mas isso é um pormenor).
Tais critérios de classificação são sempre interessantes e justificariam um longo e fascinante tratado de nomenclatura. Registe-se apenas que a televisão gosta de separar as águas, escolhendo os seus cúmplices. Exemplo? Um filme de Stanley Kubrick é, por certo, um respeitável objecto “cultural”, mas se pensarmos num título da série Harry Potter, aí já estamos no domínio ligeiro e despreocupado do “divertimento”.
Harry Potter |
Na televisão, o “divertimento” não passa de um placebo cultural: Harry Potter pode andar uma década a incutir valores específicos (de espectáculo, construção narrativa, percepção das imagens, filosofia de vida, etc.) em milhões de crianças e adolescentes, mas nada disso é tão “cultural” como a “longa” duração dos filmes de Manoel de Oliveira (que, curiosamente, há mais de vinte anos têm menos minutos que qualquer episódio de Harry Potter...).
Os exemplos são de todos os dias. Actualmente, a presença de uma longa-metragem portuguesa (Cisne, de Teresa Villaverde) no Festival de Veneza é e será uma nota de festiva curiosidade “cultural”. Entretanto, o dia a dia está todo ele dominado por uma angustiante interrogação metafísica: será que o Sporting anda a ser prejudicado pelos árbitros? Apetece dizer que estamos em pleno Carnaval de Veneza... Mesmo se a ironia pode parecer demasiado “cultural”.