quarta-feira, setembro 14, 2011

Na encruzilhada do serviço público

RENÉ MAGRITTE
A Invenção da Vida, 1928
Discutir o serviço público de televisão sem pensar todas as relações da política com a cultura? Como é que os políticos vão conseguir resolver semelhante imbróglio? – este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 de Setembro).

Curiosa ironia. Há dias, na RTP1, numa sessão do concurso Quem Quer Ser Milionário, uma concorrente fez questão em interromper a sua intervenção, deixando uma “declaração” contra a possível privatização da RTP. É um fait divers? Sem dúvida. Deixa, em todo o caso, um sintoma que vale a pena registar: para além de todos os altos e baixos da sua história, a RTP é uma “marca” que continua a ser reconhecida.
Que fazer com isso? E, sobretudo, com o poder que isso representa? A resposta não é fácil, quanto mais não seja porque a vida da RTP em democracia não pode ser separada da indiferença da maioria de uma classe política que, muito para além da RTP, encara a televisão como um mero repositório do cenário parlamentar (será que os partidos têm as suas “quotas” nos telejornais?...) ou, então, como uma ameaça de que é preciso proteger os cidadãos (há mesmo deputados especializados em arremetidas cíclicas contra os excessos de “sexo & violência”).
O pecado maior da classe política não está nas “boas” ou “más” ideias que produziu para estruturar a paisagem televisiva, antes e depois do advento dos canais privados (escusado será lembrar que este é um domínio em que nunca haverá conceitos neutros ou universais). Acontece que, com raras excepções, os políticos aceitaram que, em termos sociais, económicos e jornalísticos, a televisão fosse tratada como um domínio exterior à cultura. Porquê ou através de quê? Antes do mais, por causa de uma visão pueril e instrumental da vida cultural que desenha uma fronteira equívoca entre as coisas “sérias”, logo culturais, e tudo aquilo que, pertencendo ao chamado entretenimento, tende a ser desculpabilizado como “ligeiro” e “inconsequente”.
Na prática, esses mesmos políticos foram cúmplices dos valores de uma cultura (porque é sempre da vida cultural que se trata) que, sob a bandeira da “transparência” do Big Brother, desde o imaginário dos “famosos” até à percepção da própria política, impôs uma visão anedótica e miserabilista, não apenas da nossa vida quotidiana, mas da dignidade de cada ser humano.
Confesso o meu radical cepticismo em relação a semelhante estado de coisas. No actual contexto, a discussão sobre o serviço público de televisão adquire uma pertinência ética e simbólica que, pelo menos tendo em conta muitas práticas passadas, dificilmente encontrará eco no pensamento da classe política. Acima de tudo, porque se trata de uma questão indissociável de uma pergunta crucial, muito para além das coordenadas televisivas. A saber: o que é (o que pode ser) um Estado democrático que coloque a cultura na linha da frente das suas opções globais e estratégicas? Eis um desafio em relação ao qual a nossa democracia se mantém deficitária. Ou será que ainda há políticos que imaginam a cultura como a actividade diletante de alguns fulanos excêntricos e inevitavelmente suspeitos?