sexta-feira, setembro 09, 2011

As cartas de Louis Althusser


Grande e espantoso livro – e tanto mais quanto não foi escrito enquanto tal: Lettres à Hélène reúne as cartas que Louis Althusser (1918-1990) dirigiu a sua mulher, Hélène Rytmann, ele que viria a estrangulá-la, a 16 de Novembro de 1980, no seu apartamento da École Normale Supérieure, selando com um crime uma relação cujas atribulações, tecidas de muitas dores e parcas euforias, estas cartas, justamente, reflectem num misto de exigência de objectividade e delírio romanesco.
Como recorda Bernard-Henri Lévy, no seu admirável prefácio, estamos a lidar com a herança escrita de que alguém que foi "um dos maiores filósofos do século XX" e, inseparavelmente, um ser habitado por uma "demência" que se traduziu em décadas de austeros tratamentos, por vezes brutais (choques eléctricos), e também nessa obstinação enigmática de querer "salvar Hélène". De quê? As cartas não respondem – as histórias de amor, sobretudo as mais violentas, resistem sempre a responder à vontade de transparência dos outros.
Louis Althusser
Há uma ironia, inevitavelmente filosófica, que atravessa todo este corpus de escrita. Que é como quem diz: sendo Althusser o marxista que postula a história como "um processo sem sujeito" (desse modo desafiando a ortodoxia marxista, empenhada em fazer do proletariado o "sujeito da história"), deparamos com o enigma com que, afinal, ele próprio se confrontou: onde encontrar o sujeito da sua própria história? Ou ainda: quem matou Hélène, matando-a sob o nome de Louis?
Lettres à Hélène é o livro, espelho e poço sem fundo, dessa violência – habitada por uma ternura radical, hélas! – que ficou para a história também como um protocolo de escrita. Além do mais, um objecto essencial para ler ou reler a autobiografia L'Avenir Dure Longtemps (1992).
Dir-se-ia que a deriva mental de Althusser só encontrou algum apaziguamento no acto de escrever, precisamente esse em que os célebres cortes epistemológicos se podiam dizer (aliás, escrever) através de uma contundência capaz de desafiar a ordem aprendida do mundo, vislumbrando na súbita desordem a hipótese de uma nova ordem – ou, pelo menos, a suspensão feliz do desejo de ordenamento.