A história dos filmes, sobretudo dos mais “antigos”, pode e deve fazer-se também através das reacções e ideias que suscitaram no momento do seu lançamento: assim, hoje não temos medo do primeiro comboio filmado pelos Lumière, mas importa não esquecer que alguns dos espectadores de 1895 se desviaram nas cadeiras, receando ser atingidos pelo objecto “em movimento”. Algo de semelhante se pode dizer do filme de Visconti inspirado na novela de Thomas Mann (e, da parte do cineasta, na personalidade de Gustav Mahler): no momento da sua estreia, Morte em Veneza foi discutido menos como um ensaio sobre as ambivalências sexuais e mais como um exercício sobre a utopia de uma beleza radical – a de Tadzio (Björn Andresen), sob o olhar de Gustav (Dirk Bogarde). E talvez seja essa expressão, sob o olhar de, que, mais do que nunca, importa valorizar. Porque a visão de Gustav nunca é indiferente, muito menos assexuada; ao mesmo tempo, porém, há nela uma violência paradoxal que visa um tempo anterior a qualquer gesto sexual, uma espécie de neutralidade feliz de todas as formas de sexualidade. Bem sabemos que Gustav morre nessa contemplação, mas qualquer utopia tem um preço.
[colaboração com O Sétimo Continente]