Será que uma produção de raiz portuguesa pode chegar a uma nomeação para o Oscar de melhor filme estrangeiro? Por uma vez, temos um filme (e as suas circunstâncias) a justificar tal pergunta — este texto foi publicado no Diário de Notícias (7 Agosto).
Vale a pena reparar com atenção, e alguma disponibilidade mental, na estreia comercial de Mistérios de Lisboa nas salas dos EUA (ocorrida na passada sexta-feira). De facto, o filme de Raúl Ruiz, produzido por Paulo Branco, pode estar a conseguir uma proeza singular para o cinema português: a de ser um sólido fenómeno de prestígio, não apenas nos circuitos de festivais, mas também através de uma presença muito consistente no mercado americano, tradicionalmente difícil para a maioria dos títulos europeus.
Repare-se: não se trata de favorecer qualquer tipo de triunfalismo nacionalista, banal recurso de muita informação “cultural” que passa nas televisões (afinal de contas, temos telejornais capazes de se alhear olimpicamente de acontecimentos deste género, enquanto repetem até à exaustão o trailer de Harry Potter...). Nem se pretende omitir o facto de se tratar de um lançamento de escala reduzida, para circuitos “especializados”. Acontece que não é comum podermos encontrar uma produção de raiz portuguesa a ter o impacto que Mistérios de Lisboa está a construir no espaço americano, surgindo nos destaques semanais de jornais como o New York Times e o Village Voice, ou ainda conseguindo ser o filme mais cotado da semana para os 16 críticos do site IndieWire.
O reconhecimento de Mistérios de Lisboa excede o âmbito especificamente cinematográfico, remetendo-nos também para as questões mais gerais da difusão cultural portuguesa. Por exemplo, no prestigiado e influente Salon.com, o crítico Andrew O’Hehir, elegendo-o como “filme da semana”, lamenta não ter encontrado disponível nenhuma tradução inglesa do livro de Camilo Castelo Branco em que se baseia.
Na prática, tudo isto abre uma hipótese muito linear que vale a pena colocar em termos estratégicos, isto é, inequivocamente políticos. A saber: nunca tivemos nenhum filme português com tantas potencialidades para ser trabalhado de modo a conseguir chegar a uma nomeação para o Oscar de melhor filme estrangeiro. Que se vai fazer face a tal oportunidade?.
Não ignoro que está a decorrer uma petição pública para que um outro filme (José e Pilar) seja escolhido para tal efeito. Escusado será dizer que não se trata de discutir a opinião dos respectivos signatários, muito menos a legitimidade do seu gesto, ainda que, por princípio (muito anterior à existência de José e Pilar), considere errado assumir qualquer opção de política cultural a partir de uma petição pública (mesmo que, no final, essa opção e o sentido da petição acabem por coincidir).
O que importa reter são as singulares componentes do fenómeno americano em torno de Mistérios de Lisboa. Uma vez mais, o que está em jogo é a diversificação criativa de todas as formas do cinema português, incluindo a possibilidade de chegar a uma nomeação da Academia de Hollywood. Porque não?