Casablanca passa num canal de televisão... Mas como é que Casablanca passa em televisão? Quem vê? Quem quer ver? — este texto faz parte de uma crónica publicada no Diário de Notícias (1 de Julho), com o título 'Quem quer ver "Casablanca"?'
Reencontro Casablanca a passar num dos canais de cinema (TVCine) do cabo. Fico, extasiado, a rever as atribulações românticas de Ingrid Bergman e Humphrey Bogart em cenários cuja delicadeza romanesca não está limitada pelos artifícios do estúdio, antes surge potenciada pelas suas regras e elaborada dramaturgia. O impacto é tanto mais forte quanto o clássico de Michael Curtiz, consagrado com três Oscars (in-cluindo melhor filme de 1942), se apresenta numa imaculada cópia restaurada, preservando com admirável rigor todas as nuances da fotografia a preto e branco de Arthur Edeson.
Pergunto-me, por isso, que espectadores há por aí que ainda tenham alguma sensibilidade disponível para contemplar tão admirável objecto histórico e cinéfilo? Qual é o efeito do novo-riquismo colorido dos nossos televisores (veja-se o horror cromático de concursos e reality shows) na percepção de filmes como Casablanca?
Quem é que ainda tem olhos para ver o rosto de Ingrid Bergman a transfigurar-se, segundo a segundo, numa sofisticada teia de luz e sombra? Quem sente ainda as convulsões de uma arte narrativa que foi genuinamente popular, mas nada tem a ver com a formatação dramática e moral de telenovelas e afins?
Num tempo em que a histeria “libertina” dos tempos celebra qualquer centímetro de nudez como se fosse uma descoberta transcendental, quantos espectadores são ainda sensíveis à sensualidade interior de Casablanca e à avassaladora erotização de todos os seus elementos?
Quem é que ainda tem olhos para ver o rosto de Ingrid Bergman a transfigurar-se, segundo a segundo, numa sofisticada teia de luz e sombra? Quem sente ainda as convulsões de uma arte narrativa que foi genuinamente popular, mas nada tem a ver com a formatação dramática e moral de telenovelas e afins?
Num tempo em que a histeria “libertina” dos tempos celebra qualquer centímetro de nudez como se fosse uma descoberta transcendental, quantos espectadores são ainda sensíveis à sensualidade interior de Casablanca e à avassaladora erotização de todos os seus elementos?
Eis uma colecção de perguntas que está muito longe de se esgotar na mera reivindicação cinéfila. São perguntas visceralmente culturais, inevitavelmente políticas: decorrem da certeza de que Casablanca não integra os modelos dominantes de ficção audiovisual. Bem pelo contrário: esses modelos estão empenhados em destruir a herança de filmes como Casablanca. Todos os dias.
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