sexta-feira, junho 24, 2011

Espectadores & cinéfilos

Anna Karina em Vivre sa Vie (1962), de Jean-Luc Godard
Afinal, porque não discutimos também os espectadores que somos? Porque não aceitamos reconhecer que ser um bom espectador não é gostar dos "mesmos" filmes, mas... gostar de ver filmes — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 de Junho), com o título 'Os espectadores que não olham'.

Cena (rigorosamente verídica) numa sala de cinema, algures no território português: durante uma projecção, ouve-se o toque de um telemóvel. Facto banal? Sim, sem dúvida. Mas neste mundo de ruído em que nos obrigam a viver, o natural esquecimento (desligar o telemóvel...) não explica tudo. A tragédia é visceral: o respeito pelo silêncio não é um valor corrente.
Neste caso, porém, a história adquire contornos de absurdo, muito para além das tristezas da rotina social. Porquê? Porque o detentor do telemóvel não desliga de imediato o seu aparelho... Nada disso: sem hesitar (e sem baixar a voz!), responde. E esclarece que, de momento, está a executar uma tarefa que não pode interromper (numa localidade que fica a várias dezenas de quilómetros). A história, como tal, já seria suficientemente deprimente. O certo é que teve ainda mais três capítulos, todos com a mesma sinopse: atende o telemóvel, dá conta da sua indisponibilidade (curiosamente, como num filme sobre uma viagem no tempo, o trabalho vai mudando de local), desliga e volta... a acompanhar o filme.
Acompanhar o filme? De facto, espectadores assim poderão entrar numa sala de cinema por muitas e variadas razões (incluindo a possibilidade de ir atendendo, sem stress, os seus telefonemas profissionais), mas nunca por qualquer interesse ou curiosidade em relação a esse fenómeno empolgante que dá pelo nome de cinema. Nada disso: são o reflexo directo e obsceno de uma cultura de indiferença às imagens (e aos sons!), afinal cada vez mais triunfante nas nossas sociedades mediatizadas.
E, neste contexto, que significa “mediatizadas”? Viver num universo de spots televisivos em que nenhuma imagem tem valor específico, nem sequer meramente informativo, apenas existindo em função da velocidade de uma lógica pensada e executada para evitar o zapping do espectador. É também por isso que esse espectador se distingue, entre outras coisas, pelo horror àquilo que chama “lentidão” das imagens. Em boa verdade, é o seu olhar que vive numa lentidão pré-histórica, tendo sido educado para meros reflexos “pavlovianos”, odiando o pensamento e os seus prazeres.
Bem sei que a problematização de toda esta conjuntura não é fácil. Desde logo, porque tende a ser mascarada pelo purismo de um discurso banalmente moralista. Ou seja: a “culpa” seria da falta de educação do espectador... Podemos, como é óbvio, tecer infinitas considerações profiláticas sobre os modos de comportamento numa sala de cinema. O certo é que tais considerações estão muito longe de considerar a questão nuclear. A saber: a disponibilidade do espectador para sentir e respeitar o que está no ecrã. Não precisamos de expor a alma, como Anna Karina no filme Viver a a Sua Vida (Jean-Luc Godard, 1962). Ainda assim, desligar o telemóvel pode ser um primeiro gesto para revalorizar alguma forma de cinefilia.