Tournée/Em Digressão, protagonizado e dirigido por Mathieu Amalric, chega agora às salas portuguesas — texto + entrevista (realizada no Festival do Estoril/2010) publicados no Diário de Notícias (20 de Abril).
Este é um filme que nasce do fascínio pelo “New Burlesque”?
Não necessariamente. Ou melhor, não apenas. É também um filme sobre o homem que produz os espectáculos, sobre a sua melancolia. Ele não é apenas um produtor, em sentido convencional, mas sim alguém que, através das actrizes do “New Burlesque”, procura reencontrar uma ideia grandiosa, nobre e clássica do próprio palco.
O facto de interpretar esse homem envolve alguma projecção pessoal, alguma dimensão autobiográfica?
Não, foi mesmo um acidente. Eu queria ficar de fora, não queria aparecer neste filme. Mais do que isso: tinha já convidado o Paulo Branco para interpretar o papel. Ele tinha algumas dúvidas, mas prestou-se, com grande simpatia e disponibilidade, a gravar alguns testes. Até que um dia estávamos à sua espera para experimentar a luz. Como o Paulo não aparecia, o director de fotografia disse-me para eu me pôr na imagem... Era só um teste! Lá fui e quando estávamos a olhar para os resultados, toda a gente me dizia: “Tens de ser tu, tens de ser tu.” E fiquei.
Sente que essa sua presença acabou por ter efeitos no próprio filme?
Claro. Afinal, o filme é sobre os amores, as cumplicidades, sobre essa sensação de partilhar os contratempos e alegrias de uma digressão. De alguma maneira, estabeleceu-se uma linha de contaminação entre o que acontece em palco e as peripécias da própria rodagem. Quase como se estivéssemos a fazer um documentário sobre a nossa própria equipa.
E, num certo sentido, não era isso que procurava, essa verdade à flor da pele que o documentário pode conter?
Até certo ponto, sim. Mas foi também algo que, ironicamente, resultou dos condicionalismos da produção. Aprendi que devemos saber utilizar os próprios contratempos. Ou seja: não havia dinheiro para encenar tudo aquilo, pagar a figurantes e repetir takes. Na prática, montámos espectáculos gratuitos, com espectadores que aceitavam participar. Isso deu a cada filmagem um sentimento de urgência que me agradou. E que marcou toda a gente, desde as actrizes à equipa técnica: era preciso filmar naquele tempo (cerca de uma hora e meia por cada espectáculo), sem retoques, sem possibilidade de voltar atrás e repetir.
Até que ponto as actrizes marcaram a concepção geral do filme?
Mais do que marcaram... O filme não seria o que é sem a sua contribuição. Afinal de contas, elas são as verdadeiras protagonistas do revivalismo do “New Burlesque”. Há nelas um carisma, um sentido de espectáculo muito especial. E também muito genuíno. É qualquer coisa que já é do domínio da dádiva. Poder filmá-las foi uma dádiva que eu recebi.