terça-feira, abril 12, 2011

Cinema português & maneirismo


"Le cinéma substitue à notre regard un monde qui s'accorde à nos désirs."
[citado no genérico de Le Mépris (1963), de Jean-Luc Godard]

1. Para algum cinema português, abriu-se uma nova estética: entrámos na idade do maneirismo.

2. Escrito e realizado por Vicente Alves do Ó, Quinze Pontos na Alma emerge como uma espécie de manifesto de tal tendência. Seu valor fundamental: a citação.

3. É óbvio que a citação é uma prática cuja legitimidade é indiscutível. Mais do que isso: pode implicar todo um sistema artístico & simbólico de relação com o passado. É mesmo inerente a muitos filmes dos últimos 50 anos, em particular os que, directa ou indirectamente, se ligam com os valores da(s) Nova(s) Vaga(s). Com uma diferença que está longe de ser secundária: a citação é, aí, entendida como uma prática de escrita, não como uma caução moral. No limite, a citação pode implicar a integração (por exemplo, as imagens de A Paixão de Joana d'Arc, de 1928, que Godard inclui na sua montagem de Viver a Sua Vida, em 1962). Agora, num filme como Quinze Pontos na Alma, a citação surge como mero signo de autoridade narrativa: cita-se como se citar fosse um princípio de legitimação estética e ética.

4. Na prática, Quinze Pontos na Alma não narra outra coisa que não seja a sua própria acumulação de referências. É um labor banalmente copista que começa na "novakização" da principal personagem feminina (como se a imitação das aparências de Vertigo definisse um manifesto narrativo), prolongando-se através do "tom" da música (evocar Bernard Herrmann não basta para dar consistência narrativa a uma banda sonora) até à instrumentalização anedótica das referências autorais (há mesmo um atendedor de chamadas que responde com palavras de... Tennessee Williams).

5. Na sua saturação "cinéfila", no limite reduzindo as personagens a gadgets sem espessura psicológica ou de qualquer outra natureza, o dispositivo de Quinze Pontos na Alma acaba por reflectir uma ideologia eminentemente televisiva. Assim, o cinema deixa de ser um labor de enfrentamento do real (ou do irreal, se for caso disso), para se reduzir a uma prática pitoresca de acumulação de referências. Há em todo o projecto um carácter naif, sem dúvida tocante, fundado num estranho alheamento das próprias referências que convoca — afinal de contas, para Hitchcock a narrativa era, não uma colecção de formalismos, mas uma arte de discutir a própria ordem do mundo.