domingo, março 06, 2011

'Peer Gynt': uma oportunidade perdida


N.G.: Era, à partida, uma boa ideia... E sublinhava mais uma das marcas de personalidade de uma temporada com o gosto pelo desafio e novas experiências. Mas o resultado ficou muito aquém do que se poderia esperar de tão interessante matéria prima, sensação entretanto aprofundada sobretudo depois de constatar quão brilhante foi a Orquestra Gulbenkian (bem como a voz de Patrycja Gabrel) nos momentos em que a música chamou a si o protagonismo...

Peer Gynt é uma peça de teatro, e a presença dos diálogos, dos actores e dos cenários são elementos naturais da sua identidade. Nada contra! Contudo, a versão apresentada no Grande Auditório da Gulbenkian revelou uma série de opções que transformaram o que poderia ter sido um dos episódios a inscrever na história da presente temporada num inesperado palco para reflexões sobre o que, afinal, correu mal.

Em primeiro lugar a má articulação entre diálogos e música abafou frequentemente as vozes a ponto de se perderem valentes fatias de texto. As opções de casting não foram as mais felizes, frequentes tendo sido os momentos em que dificilmente se acompanhou a clareza de falas que, afinal, contavam uma história a acompanhar pela plateia. E porque é que se fazem falsos sotaques estrangeiros sem um rigor que os torne minimamente credíveis (e aquele sueco era tudo menos sueco!).

O vídeos eram interessantes, todavia revelando pequenos equívocos quando, por exemplo, se fala de uma esfinge e se vêem no ecrã duas famosas estátuas colossais de Ramsés II, ou se referem as velas de um navio e, nas imagens, surge um vapor...

Todavia, a maior pedra no sapato deste Peer Gynt foi mesmo a forma como foi entendido como um programa educativo para os mais pequenos... Sabendo como são os ciclos de atenção de um público ainda em idade de aprender a estar em sala, um espectáculo sem intervalo foi quase como um martírio para pais e filhos, não faltando pela sala vozes a perguntar “ó mãe, quando é que isto acaba?”... E não houve um necessário narrador (extra texto) que apresentasse o contexto, as linhas gerais da história.

Aplauso contudo para o trabalho em vídeo, para os figurinos e, sobretudo, para uma Orquestra Gulbenkian que, em grande forma, e dirigida por Osvaldo Ferreira, fez da belíssima música de Grieg o melhor do espectáculo. Nota adicional para o sempre interessante dessacralizar do papel do músico na orquestra, com o primeiro violinista a sair da sua cadeira para viver a dada altura outros espaços do palco, ou para a forma como mais elementos da própria orquestra (e maestro) chegaram a interagir com os actores.

PS. Com a orquestra ensaiada, porque não se agendou, também este fim de semana, um concerto com a suite baseada em Peer Gynt que poderia ter sido interessante complemento directo a este espectáculo?


J.L.: Será que existe alguma solução intermédia entre o Peer Gynt de Henrik Ibsen e a (sua) música de Edvard Grieg? Na sua saudável ousadia, a versão apresentada no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian parece conter uma implícita e, convenhamos, frustrante resposta. Como se o aparato do palco — com os seus três ecrãs e aquela espécie de "plataforma/segundo palco" onde estava incrustado o maestro — fosse também uma barreira para a percepção de todas as camadas de leitura/simbolismo que a obra envolve e convoca. Por um lado, desejávamos desfrutar da pluralidade de elementos cénicos; por outro lado, não queríamos perder o rigor da Orquestra Gulbenkian, sob a direcção de Osvaldo Ferreira. O certo é que, quase sempre, sentimos que aqueles elementos contrariavam a própria fruição da música — consequências dos riscos assumidos, à espera de um Peer Gynt, talvez menos exuberante, mas mais interior.