domingo, março 06, 2011

Godard para sempre


Mês de Março é, em matéria de filmes, mês de Godard. Uma parte do melhor do ano cinematográfico está aqui — este texto foi publicado no Diário de Notícias (3 de Março).

Subitamente, Jean-Luc Godard, enfant terrible da Nova Vaga francesa, eterno experimentador, protagonista de muitas rupturas estéticas, deixa de ser um assunto “marginal” do espaço português do cinema. Assim, estamos a entrar numa “temporada Godard” que, além de envolver a estreia de Filme Socialismo e do documentário Godard/Truffaut – Os Dois da Nova Vaga, se vai repartir por vários espaços de exibição, incluindo também algumas novidades em DVD.
Curiosamente, não se pode dizer que Godard seja uma presença rara junto dos espectadores portugueses, nem mesmo depois de 1994, data de JLG por JLG, auto-retrato carregado de mágoa e desencanto, abrindo para um período criativo de assumida solidão (constitui, aliás, uma das novidades em DVD). As longas-metragens que fez depois dessa data foram todas estreadas entre nós: Para Sempre Mozart (1996), objecto de subtis ressonâncias autobiográficas, discutindo o lugar do cineasta no mundo contemporâneo das imagens; Elogio do Amor (2001), deambulação sobre a morte anunciada de todos os romantismos; enfim, A Nossa Música (2004), celebrando o lugar simbólico de Sarajevo no imaginário europeu através de variações sobre a Divina Comédia, de Dante.
Filme Socialismo, revelado em Maio de 2010 no Festival de Cannes (secção “Un Certain Regard”), não é um filme cujo título seja “Socialismo”: a palavra “filme” faz parte do próprio título. Quer isto dizer que Godard identifica claramente aquilo que propõe ao espectador, insistindo na redundância. Mas é uma redundância essencial no seu universo, em boa verdade nas últimas três décadas do seu trabalho: não se trata de um objecto “audiovisual” que, em última instância, se dissolva nas convenções da televisão, mas sim de um filme-filme, sempre à procura do valor comunitário, de partilha, que o cinema pode envolver e ajudar a construir. Daí também a ironia cruel: o “socialismo” do título não é um lugar político, muito menos um discurso panfletário, mas sim um resto melancólico de um tempo em que o cinema, e não os telejornais, existia como elemento primordial de percepção do mundo.
Godard continua a distinguir-se por uma visão osbtinadamente atenta às convulsões do mundo contemporâneo, dir-se-ia um olhar de raiz jornalística. Estamos, afinal, a falar de um criador que sempre se preocupou em integrar discursos de investigação (filosóficos, sociológicos, etc.) sobre as convulsões sociais e políticas. Lembremos o exemplo modelar de Viver a sua Vida (1962), retrato [em doze quadros] da prostituição em Paris inspirado por estudos e inquéritos da época (é outro dos títulos agora lançados em DVD). Em Filme Socialismo, há uma galeria de personagens que coexistem num cruzeiro por águas mediterrânicas, deixando ecos dispersos da Babel de linguagens em que vivemos. A pergunta que fica é desesperada e risonha: como nos podemos entender no labirinto dessas linguagens? Ou ainda: como preservar a nossa humanidade?