domingo, fevereiro 20, 2011

Nixon (em alta definição)

Fotos: Ken Howard/Metropolitan Opera

Se alguém alguma vez teve dúvidas sobre se a ópera alguma vez deixou de ser um espaço de protagonismo na invenção de uma música do nosso tempo, nada como ver, para acabar com um qualquer eventual cepticismo, a mais recente produção de Nixon In China, de John Adams, que o Met levou a cena neste início de 2011 e que ontem a Gulbenkian apresentou naquela que foi a mais espantosa das propostas incluídas no programa de transmissões em alta definição a partir do palco nova iorquino. Se, em 1987, quando estreada, a ópera revelava as potencialidades de um compositor (que entretanto se fez um dos nomes maiores da história da música do presente), passados estes anos não só Nixon In China se afirmou como uma das obras centrais da música para palco do século XX, como revela ainda hoje um sentido de actualidade que tanto o espantoso libreto de Alice Goodman como a renovada reflexão da magnífica encenação de Peter Sellars continuam a vincar.

Sellars e Adams encaram esta ópera como uma entidade viva, que evolui e se transforma e assim não deixa nunca quer de reflectir a visão primordial que a definiu e os factos históricos que lhe servem de ponto de partida, como ao mesmo tempo permite o estabelecimento de pontes com um presente que assim da obra faz um objecto absolutamente contemporâneo. Na produção agora levada a cena no Met vinca-se o que terá sido um encontro de mundos que na verdade não se conheciam, um olhar crítico, por vezes sob coordenadas satíricas, pelas figuras do presidente e primeira dama e uma reflexão profunda sobre o fundamentalismo que vive junto de quem decide fazer os seus viver “segundo um livro”. A visão proposta aprofunda o fosso entre os pólos que ali se juntam, uma muralha deparando-se frente aos visitantes quando confrontados não apenas com o peso de tradições ancestrais como com as manifestações de uma revolução que entretanto impôs novas regras. A quase ausência de expressões de individualidade entre o povo visitado ganha depois particular força cénica através das secretárias de Mao, um trio de vozes-do-dono que expressam a carga opressiva do regime.


Se a encenação de Peter Sellars encontra novas formas de encarar a ópera e o libreto de Alice Goodman é ainda hoje um texto de impressionante actualidade, o trabalho em cena dos cantores e bailarinos junta mais argumentos em favor de uma produção notável. James Maddalena, que estreou o papel na produção original de 1987 (que podemos ouvir em gravação editada pela Nonesuch em 1988), é já um Nixon “veterano” e seguro no seu papel. Com ele contracenou uma espantosa Janis Kelly (Pat Nixon), não só brilhante no canto como revelando dotes de convincente interpretação (há aqui uma actriz a descobrir!). Igualmente notáveis foram o barítono Russel Braun (Chou En-Lai) e Kathleen Kim, mulher de Mao, a si cabendo o momento maior de toda a ópera no arrepiante I Am The Wife Of Mao Tse Tung.


Foi o próprio John Adams quem dirigiu, com fulgor, a orquestra do Met, da imponência cénica do momento que assinala a chegada do Air Force One ao mais discreto fundo que permite a introspecção das diversas figuras centrais no terceiro acto, sublinhando nos instantes certos as características de uma música que caminha entre as heranças directas do minimalismo norte-americano (espaço marcante na definição de alguns dos primeiros passos na obra de Adams) e ecos de tradições que ora passam por Wagner ou por alguma da música americana do século XX. Nota ainda para a espantosa captação de imagens e realização (a cargo de Sellars), que colocaram a plateia da Gulbenkian bem perto do palco do Met. Venha depois o DVD!