quinta-feira, fevereiro 03, 2011

"Cisne Negro": cinema vs. ballet


Cisne Negro é, por certo, em tempos recentes, um dos filmes com uma das campanhas visuais mais bem elaboradas [cartaz britânico]. E também um dos que suscita diferenças de percepção e avaliação mais marcadas — este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 de Fevereiro), com o título 'O cinema e os equívocos da seriedade'.

A época pré-Óscares vive-se sob a ditadura do marketing: a fabricação de “unanimidades” anula a simples fruição dos filmes. Há um fenómeno do género em torno de Cisne Negro, de Darren Aronofsky. Contaminado por um velho preconceito: o pobre cinematógrafo tornar-se-ia mais “sério” quando integra a dignidade de “outras artes”, em particular a dança.
Em boa verdade, este é um filme liminarmente insultuoso para o ballet, reduzindo-o a uma performance que depende apenas da actividade sexual da protagonista: desesperado com a inexpressividade de Nina (Natalie Portman), o encenador (Vincent Cassel) aconselha-a mesmo a ir para a casa e... recorrer ao onanismo como gloriosa porta de entrada (?) nas maravilhas da dança. Tudo isso servido por um estilo que, desde os corredores escuros até aos espelhos quebrados, aplica os mais banais clichés do cinema de terror. Referindo-se a tão “disparatado terror”, o crítico Kirk Honeycutt (The Hollywood Reporter) escreveu mesmo que Cisne Negro se perde no “buraco do ridículo”. Não foi o único. James Wolcott (Vanity Fair) refere o horror, não do filme, mas face ao filme, partilhado com uma amiga, bailarina profissional, que o acompanhou; Apollinaire Scherr (The Financial Times) considera que “um pouco de respeito” teria permitido a Aronofsky fazer “um filme menos odioso”.
Repare, leitor: não se trata de ter ou não ter “razão”, mas sim de não vermos os filmes em função do ruído à nossa volta. Por princípio, considero que não devo recomendar filmes, sobretudo os que mais admiro (a inteligência ensina-nos que nenhum olhar coincide com outro). Mas abro uma excepção, recomendando vivamente Cisne Negro. Afinal de contas, a agitação que o envolve justifica que cada um pense pela sua cabeça.