Alfred Hitchcock recebeu o prestigioso Prémio Thalberg (em 1968), mas integra uma longa lista de notáveis que, embora intimamente ligados às glórias de Hollywood, nunca receberam um Oscar. Vale a pena recordar mais alguns, estes em tudo e por tudo ligados ao melhor do presente cinema americano — estes textos foram publicados no Diário de Notícias (26 de Fevereiro), com o título 'Os Oscars que ficaram por ganhar'.
Entre aqueles que ganham os Oscars e os que vão permanecendo esquecidos pela Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de Hollywood, vai-se desenhando um bizarro confronto: afinal, compreendemos que muitas vezes se ganha (ou perde) por razões conjunturais, promocionais ou apenas de simpatia. Não vem mal ao mundo por isso. Mas é justo recordarmos alguns dos que (ainda) não têm uma estatueta dourada. Além do mais, em termos artísticos, são tudo menos banais.
* SPIKE LEE — É um dos grandes autores do cinema americano das últimas três décadas, tendo assinado títulos tão marcantes como Não Dês Bronca (1989), Malcolm X (1992) ou Verão Escaldante (1999). Spike Lee continua a não ter um Oscar (foi nomeado duas vezes: a primeira pelo argumento de Não Dês Bronca; a segunda, em 1997, pelo documentário 4 Little Girls). Tradicionalmente descrito como um retratista de personagens afro-americanas, obviamente fundamentais em todos seus documentários e ficções, o certo é que o seu universo temático está longe de ser “especializado” ou “panfletário”, impondo-o como um dos grandes analistas das ideias e contradições da América contemporânea. A sua obra-prima, A Última Hora (2002), protagonizado pelo admirável Edward Norton, é um dos primeiros filmes a tomar o pulso a Nova Iorque cerca de um ano depois dos atentados do 11 de Setembro. Ficou também como um dos mais chocantes esquecimentos da Academia de Hollywood, não obtendo uma única nomeação. Foi um ano trágico para os Oscars que, apesar de entre os nomeados estarem Gangs de Nova Iorque, de Martin Scorsese, ou O Pianista, de Roman Polanski, acabaram por distinguir o banalíssimo Chicago como melhor filme do ano.
* LEONARDO DiCAPRIO — Embora sem nenhum Oscar no seu curriculum, não se pode dizer que Leonardo DiCaprio, um dos líderes das bilheteiras de todo o mundo, seja um nome esquecido ou secundarizado pela Academia de Hollywood. Afinal de contas, obteve a sua primeira nomeação (para melhor actor secundário) por Gilbert Grape (1993), de Lasse Hallström, filme que rodou com apenas 19 anos e no qual sustentava, com brilhantismo, o confronto com Johnny Depp. Depois, por mais duas vezes, voltou a chegar às nomeações (para melhor actor): com O Aviador (2003), de Martin Scorsese, e Diamante de Sangue (2006), de Edward Zwick. Quer isto dizer que a sua notabilíssima composição em Revolutionary Road (2008), de Sam Mendes, ficou fora da corrida às estatuetas douradas. O mesmo aconteceu, aliás, a Kate Winslet que com ele contracenava (que, no entanto, esse ano arrebatou o Oscar, mas com O Leitor, de Stephen Daldry). Em boa verdade, podemos citar mais algumas extraordinárias composições de DiCaprio que também ficaram esquecidas. Lembremos apenas: Gangs de Nova Iorque (2002), de Martin Scorsese, Apanha-me Se Puderes (2002), de Steven Spielberg, e The Departed – Entre Inimigos (2006), de novo sob a direcção de Scorsese.
* JULIANNE MOORE — Conta-se que Steven Spielberg escolheu Julianne Moore para o elenco de O Mundo Perdido (1997) sem sequer se ter preocupado em fazer qualquer teste: bastou-lhe vê-la em O Fugitivo (1993), contracenando com Harrison Ford, para compreender as subtilezas do seu talento. Ironicamente, na altura, Julianne Moore parecia uma actriz mais ou menos confinada à televisão, de vez em quando conseguindo pequenos “desvios” no cinema. De facto, a partir daí, qualquer coisa mudou na sua carreira da actriz, quanto mais não seja porque passou a receber convites muito mais interessantes, para personagens bastante mais complexas. Um excelente exemplo poderá ser a sua interpretação em Boogie Nights/Jogos de Prazer (1997), de Paul Thomas Anderson, compondo uma mulher envolvida na produção de filmes pornográficos nos anos 70/80. Foi, aliás, com esse título que obteve a sua primeira nomeação para os Oscars, na categoria de actriz secundária. Em pouco tempo, Julianne Moore impôs-se como uma das figuras de excelência no interior da produção americana, além do mais circulando sem preconceitos entre grandes produções e projectos de raiz independente. Terá sido em O Fim da Aventura (1999) que conseguiu a expressão mais sofisticada do seu imenso talento. Com argumento e realização de Neil Jordan, trata-se de uma extraordinária versão do romance de Graham Greene, com Ralph Fiennes a contracenar com Julianne Moore: ela foi nomeada, desta vez para melhor actriz, mas voltou a não ganhar (Hilary Swank, em Os Rapazes Não Choram, foi a vencedora desse ano). Julianne Moore conseguiu mais duas nomeações, ambas referentes a 2002, Longe do Paraíso (actriz principal) e As Horas (actriz secundária), mas continua sem ganhar.
* TERENCE BLANCHARD — Trompetista, compositor, especializado nas subtilezas de arranjos e liderança de diversos colectivos, Terence Blanchard é uma das figuras de topo do panorama do jazz americano no último quarto de século. E é também um dos que mais regularmente tem trabalhado para cinema, com intervenções mais ou menos significativas (temas originais e arranjos) em cerca de três dezenas de bandas sonoras. Cerca de um terço de tais trabalhos pertence a filmes de Spike Lee. Na verdade, de forma semelhante a algumas grandes duplas clássicas (lembremos o exemplo emblemático de Bernard Herrmann e Alfred Hitchcock), pode dizer-se que Blanchard definiu para o cinema de Lee um universo musical que, embora fortemente ligado ao jazz, mantém ligações a outro domínios musicais, por vezes com admiráveis sugestões sinfónicas. Nunca ganhou um Oscar, mas as suas duas únicas nomeações (para melhor música) foram obtidas, precisamente, graças a colaborações com Spike Lee: Ela Odeia-me (2004) e Infiltrado (2006). De qualquer modo, é inevitável lembrarmos o extraordinário trabalho efectuado para Summer of Sam/Verão Escaldante (1999), ainda de Spike Lee: a música de Blanchard funciona aí como uma espécie de filtro dramático para acedermos a um universo marcado pela decomposição dos mais sólidos valores colectivos.