Com Que Mais Quero Eu, de Silvio Soldini [à câmara, durante a rodagem, com Alba Rohrwacher a seu lado] reencontramos um certo realismo italiano, indissociável da tradição melodramática — este texto foi publicado no Diário de Notícias (9 de Janeiro), com o título 'Algum realismo que chega de Itália'.
Felizmente, o desejo de realismo não desapareceu do cinema contemporâneo. Há nele, e na sua diversidade (não existe “um” realismo, mas muitos olhares realistas), uma resistência militante ao naturalismo obsceno que invadiu ficção e jornalismo televisivo. Mais do que isso: a preocupação realista reage também contra a ideologia dominante que, nomeadamente na televisão, descreve o cinema como mero palco de efeitos especiais de que o 3D seria a utópica apoteose.
Escusado será dizer que não se trata de impor qualquer visão realista como uma espécie de destino do próprio cinema. Afinal de contas, sabemos que, a par do olhar realista dos irmãos Lumière, o cinematógrafo nasceu também sob o signo da magia de Georges Méliès. Trata-se, isso sim, de celebrar o facto de algumas das mais interessantes, e também mais arriscadas, propostas do cinema contemporâneo surgirem tocadas pela intensidade realista.
Em anos recentes, o cinema italiano tem sido palco de algumas das mais notáveis dessas propostas, envolvendo autores como Marco Bellocchio (n. 1939), Nanni Moretti (n. 1953) ou Daniele Luchetti (n. 1960). Agora, podemos descobrir mais um exemplo feliz de tal tendência: Que Mais Quero Eu, de Silvio Soldini (n. 1958).
À partida, Que Mais Quero Eu conta uma história típica de traição conjugal, centrando-se na relação clandestina de um homem e mulher, ambos casados, ambos com um enquadramento profissional mais ou menos estável. Se reduzíssemos o conflito central do filme à mera anedota sentimental, em boa verdade nada diríamos sobre ele: com a mesma “história”, podemos imaginar o fulgor de Shakespeare ou a inanidade da telenovela. A intensidade realista nasce, antes de tudo o mais, da especialíssima atenção conferida aos detalhes do quotidiano, tratados não como “ambiente” ou “pano de fundo”, mas como elementos vivos de todas as relações. Este é um filme em que uma simples cena de bricolage caseiro pode implicar as coisas evidentes e as coisas ocultas de um espaço familiar.
Em todo o caso, nada disso faria sentido se não fosse pensado também como um modelo específico de direcção e integração do trabalho dos actores. Repare-se, em particular, na excepcionalidade do par: Alba Rohrwacher (vimo-la em Eu Sou o Amor, de Luca Guadagnino, uma das grandes estreias de 2010) e Pierfrancesco Favino (um dos protagonistas de O Milagre de Sant’Anna, de Spike Lee, infelizmente “queimado” com um lançamento directo para DVD). Rohrwacher e Favino são o testemunho exemplar de que representar face a uma câmara não é um mero jogo de tiques capaz de tipificar o humano. Bem pelo contrário: assistimos à permanente ambivalência desse factor humano, na certeza de que somos sempre os nossos gestos e o impensado que neles ecoa. Neste mundo em que tudo é mediaticamente classificado e tipificado, é bom saber que o cinema não se esqueceu disso.