Angelina Jolie e Johnny Depp em Veneza: eis a base possível para reavivar uma cinefilia que ainda se lembra de Hitchcock — este texto foi publicado no Diário de Notícias (6 de Janeiro), com o título 'Entre o humano e o divino'.
Um velho preconceito, especialmente activo nas áreas da música e do cinema, insiste em dizer que os “críticos” abominam as estrelas. Segundo tal preconceito, a estrela seria uma espécie de maná universal que existe como uma espontânea e inquestionável verdade “popular”: na prática, Madonna ou Ana Malhoa, é tudo igual...
Ora, quanto mais não seja porque a mediocridade populista já tem a vida demasiado facilitada, importa recordar uma outra verdade de que o cinema de Hollywood é (continua a ser) um modelar testemunho: ser estrela dá muito trabalho. Não basta fazer pose para a câmara ou expor alguns centímetros de pele nua (embora possamos sempre encontrar cultores de génio em ambas as actividades): a estrela é aquele, ou aquela, que partilha connosco o prazer de simular uma aura divina.
Angelina Jolie e Johnny Depp, além de actores de subtis recursos, sabem gerir como poucos o seu estatuto de estrelas. É desse saber que nasce a energia, e também a salutar ironia, de O Turista. Afinal de contas, vamos também ao cinema para vermos isso mesmo: Jolie a pisar um passeio de Paris como se a sua elegância encerrasse todos os enigmas cosmológicos; Depp cultivando uma sensualidade nonchalante em que pressentimos a fruição contida da inteligência.
Sabemos que Alfred Hitchcock já fez tudo isto, e fez ainda melhor: lembram-se de Ladrão de Casaca (1955), com Grace Kelly e Cary Grant? Em todo o caso, saudemos a serenidade com que o alemão Florian Henckel von Donnersmarck investe o modelo da comédia policial de cariz romântico, recusando a preguiça com que outros tentam disfarçar a incompetência narrativa com a ostentação técnica. Os melhores efeitos especiais de O Turista têm nomes muito humanos: Angelina e Johnny.