domingo, janeiro 23, 2011

O invisível segundo Clint Eastwood


Com Outra Vida/Hereafter, Clint Eastwood — o nome de Steven Spielberg surge enquanto produtor executivo — move-se nas paisagens enigmáticas de tudo aquilo que transcende as próprias imagens — este texto foi publicado no Diário de Notícias (20 de Janeiro), com o título 'O cinema mostra o que não se vê'.

Afinal de contas, vivemos num mundo com programas de televisão protagonizados por figuras que “comunicam” com o além e “falam” com os mortos... É um mundo em que tais agressões à dignidade humana (de vivos e mortos) existem sem que quase ninguém, nem da televisão nem da política, ainda menos da educação, levante a voz para chamar as coisas pelo nome e denunciar a impostura social e emocional.
É nesse mundo, e para esse mundo, que Clint Eastwood faz um filme como Outra Vida, tendo como base um extraordinário argumento de Peter Morgan (que escreveu, por exemplo, Frost/Nixon). Seguindo três personagens que pressentem algo que transcende o quotidiano, Outra Vida liga-os a experiências impossíveis de dizer, não acessíveis às imagens. Daí o desafio imenso: trata-se de usar o cinema, lendário instrumento do visível, para lidar com o invisível. Como mostrar o que não se vê? Começando por recusar o gratuito dos talk shows que vendem “transcendência” como pastilha elástica. A questão central será, então: como é que um ser humano se relaciona com outro ser humano?
Outra Vida não é um filme religioso, não procura a lógica ou a caução de uma qualquer religião instituída. É, isso sim, um filme sobre o sagrado, entendido como essa intensidade que começamos por sentir, não nos desígnios de qualquer divindade, mas nas alegrias e dores do nosso corpo.
No contexto de um cinema americano por vezes vencido pela “religião” da tecnologia, Clint Eastwood, na senda de clássicos como John Ford, reafirma as singularidades de um olhar enraizado numa militante crença nos poderes do factor humano. E para que não simplifiquemos tudo em clichés, convém acrescentar que a cena do tsunami com que o filme abre resulta dos mais espantosos efeitos especiais que, em muitos anos, foram produzidos em Hollywood.