quarta-feira, janeiro 19, 2011
O filme inculto
Em 1982, o Tron original, de Steven Lisberger, mostrava uma visão imaginativa e coerente do que seria o mundo dos computadores onde a presença de um utilizador (um ser humano levado da nossa dimensão) desencadeava a história. Sob um conceito visual minimalista, directamente inspirado na arrumação geometrista dos circuitos integrados, juntando uma ideia de pontuações de luz como sinónimo de feixes de energia ou fluxos de informação e efeitos sonoros que vincavam a artificialidade dos espaços e movimentos e uma banda sonora assinada por Wendy Carlos, Tron somou argumentos suficientes para se transformar num dos mais importantes filmes de culto da ficção-científica dos oitentas. A notícia de uma sequela gerou assim expectativas naturais entre os admiradores do género. Mas agora, ao ver Tron – Legacy, fica claro que, além de propor uma valente montra de banalidades no comprimento de onda do cinema de acção ensopado em efeitos especiais, se transporta a herança de um filme de culto para um outro, absolutamente inculto.
Passaram mais de 20 anos. E Flynn (Jeff Bridges), o protagonista do Tron original, está há muito desaparecido. O filho, Sam, mantém-se longe da empresa de que é accionista maioritário. Uma mensagem recebida num pager leva-o ao salão de jogos do pai há muito fechado, aí descobrindo uma sala secreta onde um terminal e um laser se revelam como as expressões físicas de um portal que liga o mundo real ao digital que existe em paralelo numa outra dimensão. E, tal e qual o pai 20 anos antes, Sam acaba transportado para o mundo dos computadores. Ao chegar é confrontado com os espaços e formas de outro mundo... Como o pai segue para a rede de jogos. Mas onde antes havia uma automática transformação do corpo humano numa realidade feita de luz e formas, agora é com o auxílio de umas ajudantes (com ar de coristas de Lady Gaga) que Sam acaba com o look à la programa de computador...
O mundo digital vive assombrado por um vilão. Chama-se CLU, foi programado por Flynn para o ajudar a criar o sistema perfeito, mas depois de um golpe de estado tomou o poder. Sonha em conquistar o mundo real e, pelos vistos passa o tempo, qual imperador romano (versão Hollywood, claro), a ver jogos de computador numa grande arena, com programas de computador como espectadores, em formato de coliseu digital. Assim, com uma pitada de Roma Antiga, uma narrativa com tutano à la Frankenstein (o criado que se vira contra o criador), umas pitadas de Matrix loja dos 300, umas tiradas pechisbeque sobre literatura e misticismo barato de pacote, e muitos, muitos, muitos, efeitos especiais, Tron –Legacy mais parece uma daquelas sequências que abrem um jogo de computador (revelando gráficos e eventuais etapas do jogo) que um filme herdeiro do Tron original.
As sequelas “recentes” de Star Wars ficaram a milhas do que a memória guardava da trilogia original. Mas entre os seis filmes corria um respeito pela “mitologia” criada para sustentar a história. Em Tron – Legacy a mitologia eventualmente herdada do filme de 1982 fica-se pelo título, a ideia de um mundo paralelo, algumas formas e nomes... E pouco mais. Há até, imagine-se, um jantar com comida real no mundo virtual (no Tron original bebiam uma energia líquida qualquer, que avivava as cores dos fatos, e a malta acreditava naquilo), móveis de estilo (mas em versão modernaça a piscar o olho ao quarto da cena final do 2001 de Kubrick... ou será ao teledisco de Bad Romance?), livros de Júlio Verne e até uma discoteca com mestre de cerimónias e DJs (na verdade os Daft Punk). Que a visão do mundo digital tenha abandonado o minimalismo bidimensional do Tron de 1982 para se aproximar do que é a linguagem visual dos jogos de computador de hoje até faz sentido. Minimalista desta vez é a ideia narrativa que faz de Tron – Legacy um monumento vazio (ah, e em 3D) que não justifica a carga do nome que transporta.