domingo, janeiro 23, 2011

No regresso de Gustavo Dudamel (parte 2)


N.G.: E, ao segundo dia, algo completamente diferente. Depois de uma noite vivida entre a música de Adams, Bernstein e Beethoven, que assinalou a estreia da presente primeira digressão internacional da Los Angeles Philramonic com Gustavo Dudamel (o seu director musical desde Outubro de 2009), o segundo concerto no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian propôs a Sinfonia Nº 9 de Gustav Mahler, naquela que foi a primeira vez que a orquestra e maestro a apresentaram fora do Walt Disney Concert Hall, a sua “casa” (onde, acrescente-se, a interpretaram já este ano).

Obra sinfónica de proporções monumentais, composta num período de pesadas sombras na vida de Mahler [retrato], a Sinfonia Nº 9 reflecte contudo um sentido de esperança (de resto não alheio a outras reflexões anteriores do compositor). Gustavo Dudamel deixou claro uma vez mais porque vive hoje o estatuto que o trabalho nos anos mais recentes lhe proporcionou. Sem evitar nunca o seu modo muito físico de respirar os momentos que dirige, comunicando permanentemente aos músicos essa sua reconhecida vontade de neles encontrar a mais profunda e viva expressão das suas energias, Dudamel mergulhou na música de Mahler ora libertando as cores da carga bucólica do segundo andamento ou as atmosferas mais elaboradas das paisagens urbanas que visita no terceiro, encontrando depois expressões mais profundas da melancolia que domina os primeiro e quarto andamentos, a longa pausa que se seguiu à última nota (sinal da inequívoca comunhão que se viveu entre uma plateia completamente cheia e os músicos em palco) garantindo a todos, depois de tão intensa experiência, o tempo necessário para o regresso ao aqui e ao agora.

Desta vez não houve encores (na véspera foram dois), mas os aplausos em pé uma vez mais agradeceram devidamente a Dudamel (e desta vez à LA Philharmonic). Hoje mesmo actuam em Madrid. Ainda esta semana estarão em Colónia e Londres. Pouco depois Paris, Budapeste e Viena, terminando esta intensa série a 5 de Fevereiro.

Entretanto vale a pena ir acompanhando a digressão da LA Philharmonic através do blogue oficial da orquestra. Da passagem por Lisboa há referências, ainda sob o natural efeito da diferença horária, a passeios pelas ruas da cidade, uma visita ao Castelo de S. Jorge, bacalhau e, claro, os ensaios e concertos.


J.L.: Em 1909, quando Gustav Mahler concluiu a sua nona sinfonia, vivia-se um tempo de muitas imaginações, técnicas e humanas, poéticas e trágicas, em que todas as narrativas se agitavam, fascinadas pela vertigem que imaginavam para o mundo — ou que o mundo lhes fazia imaginar.
Nesse mesmo ano, por exemplo, Marcel Proust [retrato] começava a escrever À Procura do Tempo Perdido (cuja publicação se iniciaria em 1913, cerca de dois anos passados sobre a morte de Mahler). No cinema, pioneiros como David W. Griffith mostravam que o filme podia ter uma linguagem própria, muito para além da "imitação" do teatro (The Lonedale Operator, célebre pelo uso pioneiro do grande plano é de 1911, ano da morte de Mahler). Enfim, em 1913, Sigmund Freud publica Totem e Tabu.
A sinfonia mahleriana, habitada ou não pela "maldição da nona" (que ele próprio temia), é uma peça fulcral desse turbilhão de histórias que abrem para novas formas, porventura para a própria interrogação da noção de forma. Escutá-la pela Los Angeles Philarmonic, sob a direcção de Gustavo Dudamel, é também pressentir, ou melhor, revisitar as convulsões de um tempo em que, mesmo face à iminência da morte, tudo parecia ainda possível. Perguntamo-nos, aliás, se Mahler ainda organiza os seus andamentos a partir de temas (e variações) ou se cada andamento não passa a existir como uma demanda, simultaneamente musical e filosófica, de um tema que talvez não chegue a adquirir forma definitiva. Nessa perspectiva, Mahler estaria muito à frente do seu tempo, num lugar onde a própria medida do tempo merece ser discutida e reavalida. Dudamel é um dos seus mais extraordinários compagnons de route.