terça-feira, janeiro 04, 2011

Homens de negro em "A Casa dos Segredos"


A Casa dos Segredos terminou com a consagração "feliz" do dinheiro... este texto foi publicado no Diário de Notícias (2 de Janeiro), com o título 'Homens de negro para o nosso 2011'.

Nas primeiras horas de 2011, na edição final do programa A Casa dos Segredos (TVI), tivemos uma impressionante imagem para começar o ano: transportados numa mala metálica dourada, foram apresentados os 50 mil euros, em notas, do prémio do vencedor. Para reforçar o sentido espectacular que se quis conferir ao momento, a mala surgiu protegida por um grupo de figurantes, homens e mulheres, de óculos escuros e guarda-roupa negro, evocando referências cinematográficas de filmes de James Bond ou ainda, de modo mais directo, as personagens de Tommy Lee Jones e Will Smith na série Men in Black [cartaz].
Muitos espectadores ter-se-ão questionado sobre o “efeito de verdade” que se quis produzir: será que, na confusão daquele cenário, a produção arriscou mostrar as verdadeiras notas do prémio? Ou tratava-se apenas de mais uma simulação para reforçar as formas de histeria mediática exploradas pelo Big Brother e seus derivados?
De facto, são questões irrisórias, cuja formulação faz parte dos próprios valores a que o programa obedece. Na prática, já não importa que aquilo que se diz ou faz possua qualquer verdade intrínseca: afinal de contas, este é um programa em que, por tudo e por nada, se pede “diga-me lá a sua emoção” (ou se exige mesmo “mostre-me lá a sua emoção”). O que importa reter é a apresentação do dinheiro como matéria viva de uma felicidade absoluta, “emocionante” por certo, capaz de rasurar todos os dramas individuais e colectivos.
A enquadrar toda esta obscenidade surge, com frequência, uma demagogia muito televisiva proclamando que o “entretenimento” não passa de uma colecção de eventos sem qualquer responsabilidade social, já que temos sempre “jornalistas”, “comentadores” e “debates” para tratar seriamente os nossos problemas. Importa contrariar a lógica argumentativa dessa demagogia, lembrando que a televisão se tornou na primeira montra social do nosso viver colectivo, a ponto de concebermos muitas formas desse viver como relações que a televisão não apenas retrata, mas organiza, induz, gere e sanciona. Programas como A Casa dos Segredos são a prova directa e inequívoca de tais poderes, nos seus efeitos simbólicos (e, desde logo, na sua presença quotidiana) muito mais influentes que qualquer escola ou instância pedagógica, pública ou privada.
Do meu ponto de vista, a discussão de tais poderes tornou-se mesmo, em Portugal, uma das prioridades culturais e políticas. Evitar discuti-los, assumindo uma postura de indiferença que, em 2010, voltou a ser maioritária na nossa classe política, será continuar a pensar as nossas muitas crises como “percalços” exteriores à televisão que vemos e partilhamos. Ou ainda: será que temos uma classe política apostada em esquecer que a primeiríssima questão política, que fundamenta todas as outras, é o sistema de valores que organiza o nosso viver quotidiano?