Mistérios de Lisboa, de Raúl Ruiz, venceu o Prémio Louis Delluc: um grande acontecimento e um bom pretexto para relançarmos algumas questões da produção cinematográfica portuguesa — este texto foi publicado no Diário de Notícias (19 de Dezembro), com o título 'Na consagração de "Mistérios de Lisboa"'.
Há qualquer coisa de doentio no modo como os graves e complexos problemas do cinema português (a começar pela sua estrita sobrevivência económica) são tantas vezes dirimidos como um inapelável conflito entre “arte” e “comércio”. Pensemos no contraponto com que nos desafiam os americanos. Desde a paternidade simbólica de David S. Griffith (1875-1948), os EUA, não por acaso detentores da mais poderosa cinematografia do planeta, compreenderam que aqueles dois elementos não são estanques nem necessariamente opostos no seu funcionamento. Em boa verdade, são insuficientes, para não dizer incorrectos, para descrever a dinâmica de qualquer contexto de produção.
O que está em jogo, entenda-se, não é nenhuma filosofia pueril para fazermos “à maneira de” (sabemos, aliás, o desastre que são a esmagadora maioria das imitações do cinema americano por europeus). Trata-se de não perder nenhuma oportunidade para valorizarmos e rentabilizarmos (em todos os sentidos) as conquistas reais da produção cinematográfica portuguesa.
A atribuição do Prémio Louis Delluc, em França, ao filme Mistérios de Lisboa, de Raúl Ruiz [foto à direita], é uma dessas oportunidades. Antes do mais, como é óbvio, porque consagra um extraordinário trabalho de reconversão da escrita de Camilo Castelo Branco, subtilmente “cinematizada” pelo argumentista Carlos Saboga e, depois, admiravelmente encenada por Ruiz. Mas também porque na sua assinatura de produção surge o nome de Paulo Branco, um dos que mais consistentemente tem apostado na pluralidade do cinema português e também nas suas ramificações internacionais (Branco está a produzir, por exemplo, o filme Cosmopolis, de David Cronenberg).
Uma das manifestações mais estúpidas que, não poucas vezes, atravessa o debate (?) sobre o cinema português é a que obriga a estar “pró” ou “contra” Paulo Branco [foto à esquerda]. Aliás, a infeliz memória colectiva dos portugueses já esqueceu que, não há muitos anos, se promovia a mesma estupidez, com toda a carga de insinuações e chantagens, em torno do nome de Manoel de Oliveira. A questão é outra, é sempre outra. O modelo de Paulo Branco não é “bom” nem “mau”, muito menos “universal”. A questão, como sempre, está nos detalhes. E que Mistérios de Lisboa ganhe um dos prémios mais importantes de todo o espaço europeu do cinema (já atribuído, entre muitos outros, a Robert Bresson, Jean-Luc Godard e Alain Resnais), eis um detalhe interessante.
Compreendemos, assim, que é possível fazer uma produção criativa e ousada que não se submeta ao império da ficção “telenovelesca”. Mais ainda: compreendemos que é possível manter uma relação viva com a televisão (Mistérios de Lisboa passará também, como mini-série, na RTP) sem ceder à mediocridade dos seus padrões dominantes. Não é cómodo reconhecê-lo, mas este Prémio Louis Delluc ecoa, no espaço português, como um facto eminentemente político.