quinta-feira, dezembro 16, 2010

Manoel de Oliveira nas décadas de 1930/40


Dois filmes de Manoel de Oliveira estão de volta às salas e estreiam-se no DVD: a sua primeira curta-metragem, Douro, Faina Fluvial [foto em cima], e a primeira longa, Aniki-Bóbó — este texto foi publicado no Diário de Notícias (12 de Dezembro), com o título 'Nas margens do Douro com Manoel de Oliveira'.

Em 1931, nos EUA, Greta Garbo impunha o seu mistério em Mata Hari, enquanto Chaplin lançava Luzes da Cidade. Em França, Jean Renoir dirigia La Chienne, com Michel Simon. Na URSS, Entusiasmo, de Dziga Vertov, era um dos acontecimentos do momento. E em Portugal? Pois bem, Manoel de Oliveira rodava Douro, Faina Fluvial.
Num país em que a formação audiovisual dos espectadores está, há mais de três décadas, dominada pelos padrões narrativos, estéticos e morais das telenovelas, é bom saber que Douro, Faina Fluvial está de volta às salas, em complemento de Aniki-Bóbó (1942), primeira longa-metragem de Oliveira. De facto, não é todos os dias que os clássicos (portugueses ou não) regressam aos ecrãs de cinema. É verdade que a proliferação de vias alternativas de consumo, incluindo o DVD e a televisão por cabo, desqualificou as salas como via primordial de acesso às memórias do cinema; em todo o caso, o renovado impacto de muitos clássicos (no DVD, em particular) faz com que seja admissível que essas mesmas salas possam recuperar muitos filmes “antigos”. Esta exibição, em cópias restauradas (com edição simultânea em DVD), representa um gesto importante nesse sentido.
Numa cultura audiovisual em que o mais corrente efeito de verdade é o do repórter que nos quer impor a sua imaculada “objectividade” (de microfone na mão e olhar na câmara), o trabalho de Oliveira continua a possuir uma notável capacidade de desafiar a formatação das imagens dominantes. Marcado pelas vanguardas da época, Oliveira filmava a vida nas margens do rio Douro através de um misto de espontaneidade e abstracção: por um lado, cultivando um olhar documental atento à vibração das relações e gestos humanos; por outro lado, procurando contrastes e ritmos indisso-ciáveis do espaço/tempo cinematográfico.
A versatilidade do seu olhar está bem expressa nas semelhanças e diferenças que podemos encontrar na fábula sobre a infância que é Aniki-Bóbó. A sua dimensão poética nasce, afinal, da mesma intensidade documental, como se Oliveira nos dissesse que o cinema não pode deixar de ser esse maravilhoso paradoxo que se cola às matérias humanas, reproduzindo-as e mascarando-as, devolvendo-as ao nosso olhar, mas também projectando-as (literalmente, hélas!) numa nova paisagem tecida de transparência e sonho.
A reposição de Douro, Faina Fluvial e Aniki-Bóbó representa, assim, um pequeno grande acontecimento em defesa das nossas memórias. Não se trata de promover o trabalho de Oliveira como modelo “obrigatório” seja do que for. Bem pelo contrário: a vitalidade de qualquer cinema (e, já agora, também de qualquer televisão) passa sempre pela afirmação de um vasto leque de singularidades. Mais de seis décadas passadas sobre a sua rodagem, estes são filmes que nos convocam em nome do nosso presente, desafiando-nos para as ambivalências do tempo.