terça-feira, novembro 16, 2010

Festival do Estoril: Monte Hellman e os outros


Road to Nowhere, de Monte Hellman [foto], emerge como um acontecimento fulcral da 4ª edição do Estoril Film Festival — este texto foi publicado no Diário de Notícias (14 de Novembro), com o título 'Caminhos da cinefilia no Estoril'.

De que se faz um festival de cinema? Ou melhor: de que se pode fazer um festival de cinema em Portugal? Basta olhar à nossa volta para compreendermos que as respostas podem ser tão variadas quanto estimulantes. No caso do Estoril Film Festival, a quarta edição parece confirmar a lógica, e também a consistência, de uma estratégia que, não menosprezando o universo das estrelas (Lou Reed, John Malkovich, Marisa Paredes, etc.), mantém uma ligação forte com os desígnios mais nobres da cinefilia. Entenda-se: a cinefilia como atitude de permanente pesquisa e valorização da pluralidade do cinema, sem preconceitos face aos contrastes dessa mesma pluralidade, desde o experimentalismo lúdico de Abbas Kiarostami (Copie Conforme) até ao génio romanesco de Benoît Jacquot (Au Fond des Bois).
Curiosamente, este ano, algumas das propostas mais sedutoras do certame passaram pela fotografia. Desde logo a exposição “Romanticism”, de Lou Reed, uma espécie de revisitação (digital) da melancolia romântica, mas sobretudo o conjunto de imagens do espanhol Alberto Garcia-Alix [auto-retrato]. Se outras razões não houvesse para ir ao Estoril, a descoberta do trabalho de Garcia-Alix seria suficiente, tanto mais que o festival deu a conhecer o seu filme De Donde Non Se Vuelve, pequena obra-prima (pouco mais de 30 minutos) que utiliza as fotografias como base iconográfica para um espantoso discurso confessional.
E se a retrospectiva do veteraníssimo francês Chris Marker confirmou o persistente sentido visionário da sua estratégia documental (através de Ouvroir The Movie e das experiências na Internet, nos espaços do Second Life), Road to Nowhere, de Monte Hellman, terá ficado como símbolo exemplar do que pode ser uma cinefilia para o século XXI.
Centrado nas personagens envolvidas na rodagem de um filme em Los Angeles, Road to Nowhere pode resumir-se como uma variante sobre o clássico “filme-dentro-do-filme”, contaminado por uma perversa variação herdada do Blow Up (1966), de Michelangelo Antonioni. Ou seja: que vemos nas imagens e, sobretudo, como é que cada imagem funciona como fantasma de algum desejo?Além do mais, Road to Nowhere integra de forma admirável a referência às novas máquinas digitais: por um lado, porque as utiliza com resultados visualmente invulgares (é notável a direcção fotográfica assinada pelo espanhol Josep M. Civit); por outro lado, porque tal integração é um tema inerente à própria acção que o filme encena.
Road to Nowhere consegue a proeza de funcionar como uma reflexão sobre o “aqui e agora” das imagens cinematográficas, sem por isso alienar a sua condição de admirável deambulação romanesca. Torna-se, por isso, inevitável recordar o clássico de culto de Hellman, Two-Lane Blacktop (1971): quase 40 anos depois, ele reafirma-se como um dos mais fulgurantes, e também mais discretos, criadores do cinema made in USA.