Para o seu novo filme, Cópia Certificada/Copie Conforme, o cineasta iraniano Abbas Kiarostami deslocou-se a Itália, à Toscânia. Nas suas deslumbrantes paisagens, ele encena o encontro de uma francesa (Juliette Binoche), proprietária de uma galeria, e um inglês (William Shimell), escritor a promover o seu livro mais recente: é um diálogo marcado pelas diferenças e cumplicidades das relações humanas. Esta é a primeira parte de uma conversa, registada no último Festival do Estoril, que serviu de base a uma entrevista publicada no Diário de Notícias (18 de Novembro).
Ao filmar Cópia Certificada, mudou de país e de língua: quais os efeitos dessa mudança no seu trabalho como cineasta?
Na verdade, não mudei de língua nem de país (repare, agora estou a falar-lhe em farsi e a ser traduzidos em francês). Acontece apenas que, neste caso, tive necessidade de um adaptador (como se diz para a corrente eléctrica). No fundo, é como se o filme tivesse sido previamente dobrado, entre o argumento e a rodagem, mas isso não altera o processo criativo: a criação não tem língua.
Quais os resultados práticos dessa adaptação?
Claro que, para mim, havia uma profunda curiosidade: tratava-se de saber como funcionamos para além da língua, da geografia e das especificidades culturais. Ou seja: será possível compreendermo-nos e sentirmo-nos próximos? Ou ainda: em que medida um ocidental e um oriental têm corações que se podem reunir?
Creio que o tratamento mediático do caso recente de Sakineh Mohammadi Ashtiani (condenada por adultério) é o exemplo claro do mal-entendido entre ocidente e oriente. Trata-se de uma informação difundida pelos meios de comunicação ocidentais para dizer “vejam como somos diferentes, vejam como no Irão uma mulher engana o marido e é apedrejada ou enforcada... ”. Ora, nós estamos muito mais próximos do que isso: há muitas mulheres iranianas que enganam o marido sem que nada lhes aconteça. A questão da fidelidade ou da infidelidade não mudou com a República Islâmica. Os problemas de fundo são os mesmos. Acontece que há governos que tiram partido desse tipo de mal-entendido.
Face a esse mal-entendido, o cinema pode ter um papel diferente?
A diferença entre a arte e os media decorre do facto dos artistas trabalharem para apontar as semelhanças das almas humanas. É isso que tentei mostrar ao fazer um filme como Cópia Certificada: as nossas semelhanças decorrem da nossa humanidade.
Como distinguiria, então, as capacidades do cinema?
A força do cinema não está na imagem, já que o cinema apenas existe em função de um dispositivo de natureza ritual, entrando numa sala escura e cortando todos os laços com o mundo exterior, mesmo com a pessoa que está sentada ao nosso lado. É uma cerimónia mais forte que uma sessão de meditação.
[continua]