terça-feira, outubro 19, 2010

A política que (não) vemos na televisão


Na maior parte dos casos, a informação televisiva continua a difundir/encenar a vida política como uma actividade mais ou menos caricata, sempre à beira da catástrofe ou do ridículo — este texto foi publicado no Diário de Notícias (17 de Outubro), com o título 'Os "apanhados" da nossa política'.

Ao fim da noite de sexta-feira, dia 15 de Outubro de 2010, através das televisões, pudemos contemplar imagens de tão bizarra obscenidade que, importa, pelo menos, registar as suas características principais. Que estava a acontecer? A entrega, na Assembleia da República, pelo Governo de José Sócrates, do Orçamento de Estado para 2011. Em boa verdade, o que parecia estar a acontecer era um motim: fotógrafos, operadores de imagem e repórteres empurravam-se heroicamente para registar algum sinal do acto da entrega. O resultado era uma espécie de patético filme de telemóvel, desastrado e jornalisticamente pueril, para mais pontuado pelo protesto de alguns dos repórteres, queixando-se da falta de condições para “trabalhar”.
Nada disto tem a ver com dois ou três dados de incontornável seriedade, desde o lamentável atraso do Governo na entrega do documento até à dramática conjuntura económica. Já nem sequer tem a ver com qualquer avaliação séria de José Sócrates e dos seus ministros. Na prática, continuamos a assistir ao mesmo quotidiano processo de desgaste mediático que, ainda há poucos anos, acompanhou a queda do Governo liderado por Pedro Santana Lopes.
Que desgaste é esse? O de propalar, todos os dias, uma visão anedótica do trabalho político, a ponto de os desesperados encontrões de um conjunto de profissionais de câmara na mão (com alguns incautos políticos a fazer “figuração” lá ao fundo...), ser difundido como uma percepção justa desse mesmo trabalho. “Justa” de justiça? Não. “Justa” de justeza, quer dizer, de adequação inteligente à especificidade e complexidade dos acontecimentos.
Como qualquer linguagem audiovisual, a televisão é uma forma de encenação. O cinema, aliás, tem tido o cuidado de nos chamar a atenção para tal condição (lembro, por exemplo, esse filme admirável que é Quiz Show, realizado por Robert Redford em 1994). E falar em artifício não é falar em “mentira”, mas sim em responsabilidade: cada imagem (e som) que se produz não tem nada de natural ou espontâneo, decorrendo sempre de uma atitude de selecção e interpretação face àquilo que nos é dado ver, escutar e pensar.
Não por acaso, estamos de novo a viver sob o signo do Big Brother. E é triste que essa escola nacional de primarismo televisivo e estupidez humana continue ausente dos discursos dos políticos do nosso país. Será que, da classe política, ninguém tem nada a dizer sobre o facto de a cultura televisiva dominante ser a cultura dominante do povo português?
Entretanto, ligamos as televisões e, muitas vezes, como na noite de sexta-feira, vemos essa mesma classe política retratada como uma colecção caricata de “apanhados”. Ainda bem que temos uma democracia que permite todos estes desmandos. Mas não seria altura de algumas formas de jornalismo pararem para pensar, perguntando o que estão a fazer pela democracia?