Afinal de contas, em televisão, que significa colocar uma bolinha vermelha no canto do ecrã? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (22 de Outubro), com o título 'Com bolinha vermelha'.
Há dias, perante a passagem do filme Entre Inimigos (The Departed), de Martin Scorsese, na RTP1, não pude deixar de me voltar a fixar na bizarra bolinha vermelha no canto superior direito do ecrã. Bem sei que há uma disposição legal que obriga à exibição desse sinal para filmes classificados para públicos adultos. Também não esqueço que, apesar de muitas contradições e limitações, a RTP continua a programar cinema com um mínimo de regularidade e evidência. Passo mesmo ao lado do facto de a cópia exibida ser feita a partir de um processo de reenquadramento que corta de forma brutal as imagens originais (cuja proporção é de 2,35:1, ou seja, o clássico “formato largo”).
E regresso à necessidade de pensar o absurdo que a lei pode favorecer. Que sentido faz “castigar” um filme com um símbolo tão primário? Mesmo aceitando que importa chamar a atenção dos espectadores para conteúdos considerados perturbantes, há maneiras mais subtis de o fazer. Num contexto em que a mais violenta pornografia moral (nome: Big Brother) é vendida como coisa “normal”, há alternativas mais inteligentes para contextualizar o cinema, alternativas que nenhum canal pratica e podem valorizar, acima de tudo, a compreensão temática, estética e histórica de cada filme.
O caso agrava-se se pensarmos na marginalização da esmagadora maioria dos filmes para horários nocturnos a que nenhum outro conteúdo (telenovelas, concursos, apanhados, etc.) é sujeito. Estamos, de facto, a falar de um filme programado para as 23h24 (terminando por volta das duas horas da madrugada): sinalizá-lo com a infame bolinha vermelha é, afinal, passar um atestado de infantilismo a cada espectador.
Porque, em última instância, é isso que está em jogo: uma cultura da responsabilidade, devidamente partilhada por quem emite e quem recebe. Práticas como a bolinha vermelha decorrem de um entendimento simplista do espectador, reduzindo-o a uma cabeça oca e vítima potencial. Chama-se a isso paternalismo. É péssimo para o cinema e destrói a inteligência que a televisão pode ter.