quarta-feira, setembro 29, 2010

Televisão do desassossego

ALMADA NEGREIROS
Retrato de Fernando Pessoa
1954

Grande momento de televisão: a conversa entre Eduardo Lourenço e Paula Moura Pinheiro na edição de 19 de Setembro do programa Câmara Clara — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 de Setembro).

Eduardo Lourenço passou pelo programa Câmara Clara (RTP2). Trouxe a sua imensa sageza, não para impor um discurso normativo (afinal de contas, só alguns comentadores de futebol acreditam que os golos são uma questão de “justiça”), mas para partilhar connosco a passagem incessante do saber e do desconhecimento, da transparência que pressentimos e da resistência com que as palavras, apesar delas ou apesar de nós, nos deixam viver esse pressentimento.
Falou-se de Antero de Quental e do horizonte despojado, abandonado por Deus, que na sua obra se desenhou. Falou-se também de Fernando Pessoa, Bernardo Soares e do assombramento do seu Livro do Desassossego. A propósito, referiu-se o Filme do Desassossego, belíssimo objecto de cinema assinado por João Botelho [estreia hoje, dia 29]. Falou-se, enfim, da dor muito viva de ser português e possuir a energia de continuar a questionar o seu imenso labirinto. A propósito, ainda, evocou-se Schönberg e a muito contemporânea Noite Transfigurada.
Falou-se. Que bom poder falar-se em televisão sem colar palavras tontas para produzir um simulacro de originalidade. Paula Moura Pinheiro teve a serenidade necessária e suficiente para compreender que o labor da fala implica a humildade da escuta. Dito de outro modo: falar com alguém nada tem a ver com a agitação, sempre à beira da histeria, com que muitos entrevistadores televisivos apenas conseguem transmitir a ânsia pueril com que tentam escolher o melhor (?) momento para interromper o entrevistado. Será outra questão (sendo a mesma), mas importa deixar uma dúvida amarga: porque será que as televisões, afundadas em “debates”, raras vezes conseguem transmitir este gosto radical pela fala que circula e produz sentidos?
A lição, ética e televisiva, de Eduardo Lourenço [foto] passa pela recusa de qualquer efeito de “especialização”. A autoridade do seu discurso não provém de nenhuma ditadura do sentido (“o resultado foi justo ou injusto?”), ancorada num qualquer discurso de “especialista”. É uma autoridade que decorre da simples disponibilidade de pensar. No que isso implica de solidão. E também na partilha que pode gerar. Foi um desassossego.