quarta-feira, agosto 18, 2010

Christopher Nolan: cinefilia e sonho

Sob a direcção de Christopher Nolan [à direita, na imagem], Leonardo DiCaprio vive em Inception/A Origem uma aventura toda ela contaminada pelos poderes dos sonhos — este texto foi publicado no Diário de Notícias (15 de Agosto), com o título 'A cinefilia também é sonho'.

A propósito do seu filme Inception (entre nós: A Origem), Christopher Nolan deu uma interessantíssima entrevista a Amy Taubin. Está publicada na edição de Julho/Agosto da Film Comment (revista da Film Society do Lincoln Center, de Nova Iorque) e apresenta um título de claras ressonâncias psicanalíticas: “O trabalho do sonho”. Não que Nolan defina a sua obra como uma derivação da psicanálise; trata-se mesmo de uma “alternativa”, já que, quando Taubin lhe pergunta se já fez psicanálise, ele esclarece que não, usando o cinema “para esse fim”. Confrontado com os eventuais paralelismos da narrativa de Inception com o inconsciente, Nolan sublinha: “Ao fazer filmes, é possível convocar o inconsciente e lançar uma metáfora ou um símbolo com muitas camadas de significação; quando se segue isso com sinceridade, não é preciso compreender tudo de forma consciente”.
Bem sabemos que, de George Méliès a David Lynch, passando por Luis Buñuel ou Jean Cocteau, a arte de contar histórias em cinema nunca foi estranha aos labirintos do mundo onírico. Nesse sentido, Nolan reconhece-se inserido numa longa tradição que remete para referências muito concretas, com inevitável destaque para O Último Ano em Marienbad (1961), de Alain Resnais: para além de todas as diferenças de contexto e produção, Inception e esse título emblemático da Nova Vaga francesa partilham o mesmo gosto por uma vertigem cognitiva que nasce da presença obsidiante dos sonhos.
Curiosamente, a relação de Nolan com o filme de Resnais [foto] decorre de uma espécie de ziguezague cinéfilo. É ele próprio que esclarece as ambivalências de tal relação, lembrando que apenas viu recentemente O Último Ano em Marienbad (na edição em DVD da colecção Criterion): “Nunca tinha visto o filme e, ainda assim, há momentos em Inception que são semelhantes, já que eu tinha visto filmes de cineastas que tinham visto Marienbad”.
Nolan estipula, assim, uma hipótese, simultaneamente teórica e afectiva, cuja energia vale a pena sublinhar: a cinefilia (à letra, recorde-se: o amor pelo cinema) nasceria, não de uma hierarquia académica de conhecimentos, mas sim de uma circulação de valores que, pelo menos em parte, pode ser aproximada também do trabalho do sonho, condensando, reconvertendo e deslocando a própria experiência de descobrir um filme. No limite: baralhando a dimensão conceptual de cada filme e as suas singularidades emocionais.
Esta é uma visão que nos permite sair dos preconceitos (pró ou contra, tanto faz) que lidam com Inception, e também com muitas produções de Hollywood, como se a sua sofisticação técnica fosse o princípio e o fim do seu trabalho. Trata-se, afinal, de viver o cinema como paisagem de um eterno presente: cada filme é, em última instância, um descendente de todos os outros filmes, como se fossemos espectadores de um sonho que alguém está a sonhar por nós. E para nós.