Como entrar numa intriga à maneira de James Bond e... sobreviver? Sendo mulher, entenda-se — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 de Agosto), com o título 'Memórias e ironia da Guerra Fria'.
Num momento antológico de Salt, a agente da CIA Evelyn Salt procura estancar o sangue de uma ferida na anca. Envolvida numa perseguição vertiginosa, recorre à única solução disponível: um penso higiénico (tendo o cuidado de colocar a fita adesiva directamente sobre a ferida). Sem desprimor para Tom Cruise, não será fácil imaginá-lo a adoptar uma solução tão bizarra e, afinal, de tão desarmante naturalidade (Salt foi inicialmente escrito para Cruise que acabou por desistir do projecto, considerando-o demasiado próximo da série Missão Impossível). Com Angelina Jolie no papel de Evelyn, o momento decorre do mais puro espectáculo: um gesto dramaticamente justificado que integra a sua própria ironia.
Aliás, Salt é, todo ele, um projecto indissociável de uma desconcertante estratégia irónica. E não apenas porque Angelina Jolie representa, com evidente satisfação e elaborado savoir faire, uma espécie de “correcção” feminina do modelo de James Bond. Também porque a realização de Philip Noyce [foto] convoca, sem complexos, todo um aparato ideológico cujas ramificações vêm do período da Guerra Fria, com componentes dramáticas que evocam o thriller político de Hollywood na década de 70: lembremos os exemplos de A Última Testemunha (1974), de Alan J. Pakula, e sobretudo Os Três Dias do Condor (1975), de Sydney Pollack.
Claro que Salt é produto de uma máquina de produção tecnicamente sofisticada. Mas a sua nostalgia narrativa confere-lhe uma dimensão física, à flor da pele, que se tornou coisa rara nos produtos iludidos pela proliferação dos efeitos especiais. Convenhamos que fazer drama com um penso higiénico não é simples. Sobretudo conservando o glamour.