domingo, junho 06, 2010

O "povo" da vuvuzela

Esta primeira página resume o estado das coisas — e tanto mais quanto se assume como agente mediático desse mesmo estado das coisas. Dito de outro modo: não há como um grande acontecimento futebolístico para que a palavra "povo" reapareça, como uma espécie de referente último, derradeiro gadget de linguagem através do qual as palavras ainda nos conseguem oferecer o luxo de uma ilusão comunitária. Acrescente-se a isso um pouco de marketing ideológico e está definida a conjuntura mediática em que somos obrigados a reconhecer-nos, sob pena de sermos incriminados como "maus" cidadãos: no tempo de Scolari, foram as bandeiras a apodrecer nas varandas, agora é o aparato importado das vuvuzelas.

Circula por tudo isto a ilusão paternalista de que a cultura de outro povo é, obrigatoriamente, a cultura de qualquer povo... A maior parte dos dispositivos televisivos amplia o vazio de ideias até à histeria — por exemplo, transformando em acontecimento nacional a viagem de um autocarro desde o Marquês de Pombal até ao Aeroporto da Portela —, postando em sítios estratégicos repórteres que, além da frase "é a loucura!", parecem ter esgotado qualquer interesse pela pluralidade da língua portuguesa.

O mais interessante — leia-se: o futebol — há muito foi excluído de todos estes rituais. Afinal de contas, desde a saga populista de Scolari, as estruturas do futebol português conseguiram produzir uma selecção que quase só se distingue por grandes vitórias contra o Lichenstein e outras equipas afins... Apesar disso, ou precisamente por causa disso, os impulsos para o consumo populista do futebol são cada vez maiores. E, com as vuvuzelas, tais impulsos conseguem ser, literalmente, mais ruidosos — um dos princípios rudimentares deste tipo de histeria nacional é mesmo conseguir que já ninguém ouça ninguém.