CARL HEINRICH BLOCH
Cristo e as Crianças
(1865-1879)
Poderemos definir José Saramago como um narrador de narrativas. Não por qualquer redundância historicista. Antes porque o seu labor, ao mesmo tempo pedagógico e heterodoxo, passou sempre pela vontade de nos confrontar com a narrativa como coisa que não nasce espontaneamente de nenhum real, antes o revela, integra, transfigura, porventura perdendo-o pelo caminho.
Nesta perspectiva, O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991) será o modelo mais exemplar da galáxia narrativa de Saramago. Desde logo, claro, porque o escritor lida com a herança, civilizacional e estética, da Bíblia, a nossa "narrativa-de-todas-as-narrativas"; depois, porque o faz na procura de uma vivência radical da palavra, assombrada pela infinita complexidade do factor humano, incluindo a presença do divino nesse factor. Hoje como ontem, as "polémicas" em torno do respeito (ou da respeitabilidade) do livro tendem para a histeria inócua de telejornal. Dito de outro modo: o anticlericalismo de Saramago (cuja verve será inútil negar) pouco ou nada tem a ver com a matéria visceral de O Evangelho segundo Jesus Cristo. A saber: o modo como existimos também através das palavras, sobretudo quando elas nos convocam para uma transcendência em que alguns querem fundamentar a obrigação de um silêncio casto. As narrativas de Saramago dão-se mal com esse silêncio, e tanto mais quanto vivemos num mundo saturado de ruídos obscenos que ninguém questiona.