Que fica dos trabalhos da comissão de inquérito do caso PT/TVI? Que trabalho político? E, sobretudo, que conceito televisivo da política? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (18 de Junho), com o título 'A simbologia de João Semedo'.
Para a história da comissão de inquérito do “caso PT/TVI”, o deputado João Semedo [foto] ficará, malgré lui, como o rosto simbólico. Com esse momento olímpico que, se os deuses o permitirem, dará entrada na grande antologia da retórica política. A saber: foi João Semedo quem nos veio dizer que não foi possível provar a origem do conhecimento informal que o primeiro-ministro teria do assunto. Admirável oximoro: um facto incerto (“teria” conhecimento), de contexto indefinido (“informal”), cuja origem fica por... provar.
Escusado será dizer que nada disto acrescenta (nem subtrai) seja o que for ao que sabemos (ou não sabemos) sobre José Sócrates, mesmo que o consideremos um perigoso salteador a monte. Acontece que todas estas maravilhas do nosso linguajar político são, cada vez mais, indissociáveis do aquário televisivo em que o país passou a viver. Importa admirar a comovente inocência de João Semedo e da comissão de inquérito: nunca, nem por um momento, tão preclaro colectivo deu mostras de uma hesitação, um soluço ou um gesto que o levasse a compreender (e, se possível, questionar) a lógica banalmente televisiva dos seus procedimentos.
Assim, face às alegadas malfeitorias do primeiro-ministro, muitos actores da cena política demitiram-se de contrapor um discurso que visasse o mais nobre dos seus interlocutores, isto é, o eleitorado. Preferiram avançar com um dispositivo idêntico aos concursos (derivados da obscenidade dos reality shows) em que os participantes são sujeitos a testes de “verdade” elaborados a partir da palavra de outros. Na prática, ofereceram ao país um espectáculo de muitos meses em que se tornou essencial avaliar quem se tinha engasgado durante um almoço ou a que horas, minutos e segundos tinha tocado um telemóvel...
O mais extraordinário de tudo isto é a candura com que a maioria da classe política se espanta por ver o seu trabalho desvalorizado por muitos cidadãos. Mais do que isso: é notável como essa mesma classe não só recusa pensar os valores televisivos dominantes, como aceita ser instrumentalizada pela vulgaridade desses mesmos valores.