domingo, maio 02, 2010

'O Sonho' chega amanhã a Lisboa

Este texto foi publicado na edição de 27 de Abril do DN com o título ‘O sonho que nasceu em Londres. A a ópera O Sonho, de Pedro Amaral, estreia amanhã em Lisboa, no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, pelas 21.30.

Quanto tempo leva um sonho a concretizar-se? Este, em concerto, levou três anos. As primeiras ideias juntaram-se na Primavera de 2007. Ganharam palavras, música, vozes e depois, finalmente, vida em cena… E foi ao fim de uma tarde de Primavera, em 2010, que O Sonho pela primeira vez se fez ouvir num palco, frente a uma plateia. Foi no último domingo, dia 25, no The Place, uma sala (a celebrar 40 anos de actividade) numa pequena transversal da londrina Euston Rd, com os sorrisos trocados no final entre o compositor Pedro Amaral, os cantores e os elementos da London Sinfonietta a sublinhar que tudo, de facto, correra bem.

Foram anos de trabalho para o compositor, envolvendo depois uma equipa que, sobretudo nas últimas semanas, trabalhou incansável no transformar de uma ideia escrita num corpo vivo. Ensaios atrás de ensaios, sob os olhares atentos de Fernanda Lapa (que assina a encenação) e direcção do próprio Pedro Amaral. Um esforço fisicamente exigente para músicos e cantores, em particular as três vozes femininas, com os últimos três dias em Londres acentuando mais ainda o ritmo de trabalhos iniciados em Lisboa… E com o próprio compositor aproveitando os últimos momentos para dar forma final à orquestração. E por isso, ao fim da tarde de domingo, ninguém apostaria se o cansaço ali seria menor que o que certamente apresentariam os muitos que, nesse mesmo dia, e a apenas alguns poucos quilómetros de distância, tinham participado na famosa maratona de Londres…

A estreia mundial de O Sonho, que contou entre a plateia com a ilustre presença de Peter Eötvös (um importante colaborador de Stockhausen e, em tempos, professor do próprio Pedro Amaral), deu finalmente vida a uma ideia que partira de um entusiasmo antigo do compositor português por Fernando Pessoa. De resto, e como o próprio autor da ópera reconhecera, num encontro em registo informal com o público numa outra sala do The Place pouco mais de uma hora antes de o primeiro compasso se fazer ouvir, é quase "impossível a um artista português" escapar a uma atenção pela obra do poeta.

O Sonho nasceu contudo de um texto que está longe de figurar entre os que frequentemente são citados como centrais na obra de Fernando Pessoa. Trata-se em concreto de uma peça de teatro que deixou inacabada e na qual o poeta "repensa o mito de Salomé", como o compositor explicou na ocasião. Inspirada no relato bíblico, a Salomé de Pessoa "sonha e modifica a realidade". Em concreto, a figura de São João Baptista não existe na história "antes de Salomé a sonhar". Pedro Amaral consultou, na Biblioteca Nacional, textos dactilografados e manuscritos. E deles criou uma visão que, além de partir da abordagem de Fernando Pessoa, desdobra depois a figura de Salomé em três, projectando-a então nas suas duas aias. "Às tantas já não sabemos exactamente quem é quem", sublinhou na apresentação que, feita em inglês, partilhou com o público presente alguns factos e ideias nos bastidores da obra que, pouco depois, se escutaria na sala maior, no piso inferior.

O Sonho partiu de uma encomenda da Gulbenkian, num esforço conjunto entre o seu Serviço de Música e a delegação britânica da fundação. Surge assim no quadro de uma política de apoio à música contemporânea que ao longo dos anos se traduziu em já várias dezenas de obras pedidas a compositores portugueses e também a nomes do panorama internacional como, entre outros, Karlheinz Stockhausen, Olivier Messiaen, Iannis Xenakis ou Thomas Adès. A ópera assinala ainda mais um encontro entre o compositor e a London Sinfonietta, com quem tem trabalhado com alguma frequência ao longo dos últimos anos. Depois da estreia londrina, O Sonho chega a um palco nacional amanhã (segunda-feira), pelas 21.00, no Grande Auditório da Fundação Gulbenkian, em Lisboa.