Continuamos a publicação integral de uma entrevista com o compositor Pedro Amaral a propósito da ópera O Sonho, que serviu de base ao artigo 'Dar corpo a um sonho pessoano' publicado no DN a 3 de Maio.
Levou muito tempo a chegar à versão final do libreto?
Até ao último dia da composição não tinha o libreto completamente fechado. Tinha evidentemente um libretio bastante pronto. Mas que fui alterando. Não só a ordem, mas em alguns momentos cortei umas partes do texto. Não dei o libreto definitivo, enquanto da Gulbenkian me telefonavam desesperadamente a pedir o libreto para o publicarem. Mas não quis dar logo, porque não tinha a certeza se aquelas palavras seriam exactamente aquelas que ia usar.
As primeiras ideias musicais surgem durante a pesquisa? Ou só mais tarde?
Estruturei primeiro a narrativa. E devo dizer que não há nenhuma ideia musical que não tenha nascido directamente do texto. A música surgiu directamente do texto. Penso que a música deve nascer da dramaturgia, ou seja, da intenção dramática que damos a cada palavra. Se a música nasce da dramaturgia, então a música veicula essa dramaturgia e está certa para aquela palavra. Se a música é prévia a isso, e ainda recentemente ouvi exemplos de música prévia à dramaturgia, então na minha opinião não funciona. Porque estamos a ouvir um canto que nada nos convence em relação à palavra que veicula.
O palco é, depois, o espaço, onde as ideias se concretizam. Há ainda espaço para a surpresa quando finalmente escuta a ópera, em cena?
Em geral devo dizer que tenho poucas surpresas quando chego ao palco... Trabalho longamente nas coisas e quando chego ao palco é raro ter surpresas, mas acontecem. Acontece-me às vezes estar a dirigir e ter um momento de emoção. Aconteceu com este trabalho agora, nos ensaios com orquestra, antes de ensaiar com os cantores. Tinha preparado os cantores com piano e, ao chegar a Londres, ensaiei com orquestra. E há um momento em que estou a ensaiar com as cordas a parte do Herodes, o pai da Salomé. Procurei fazer para cada personagem uma música completamente diferente. O Herodes é ao mesmo tempo de um lirismo que nunca tinha feito. Nunca tinha composto uma música assim. E no momento em que comecei a ensaiar com as cordas, às tantas parei. E houve ali um momento de sinceridade com a orquestra. E pedi desculpa, que me sentia extremamente exposto... Eu que normalmente tenho uma relação muito profissional com a orquestra, em que sei o que quero e peço-lhes o que quero, ali tive de parar uns segundos. Eles riram, e disseram que era mahleriano... E eu ri-me e recomecei. Mas é um momento raro de não previsão daquilo que tinha feito. Sei os ritmos de cor, as notas de cor, mas há um momento, que diria fenomenológico, em que a emoção se sobrepõe ao que nós antecipamos racionalmente. São momentos muito raros, as acontecem às vezes... O principal é há esse nascimento, esse parto, acontece antes. Acontece como quando um aquitecto vê um espaço e tem uma primeira ideia de um edifício. É quando imaginamos uma dramaturgia e começamos a fazer a música. Esse é o parto, o momento em que a música nasce. É ali que o corpo começa, mais que no palco. Onde é só um detalhe. Embora haja surpresas, como esta.