domingo, maio 16, 2010

Em conversa: Pedro Amaral (1)


Iniciamos hoje a publicação integral de uma entrevista com o compositor Pedro Amaral a propósito da ópera O Sonho, que serviu de base ao artigo 'Dar corpo a um sonho pessoano' publicado no DN a 3 de Maio.

De onde e quando vem a sua admiração por Fernando Pessoa?
Conheci um poema do Fernando Pessoa muito cedo, teria uns 11 ou 12 anos. Era do Álvaro de Campos, a Tabacaria. Adorava. E tanto o li que acabei por decorá-lo. Esse e outros... Foram poemas que me obcecaram tanto... Mais tarde, no liceu, comecei a fazer recitais de poesia com esses poemas. É portanto um interesse que já vem de longe. Mas nessa altura eu estava a estudar música e sabia prefeitamente o que queria fazer: queria ser compositor... Adorava teatro, mas sabia que não ia fazer carreira a esse nível. E agora, só depois de composta a ópera, vi que o meu trabalho como compositor me permitiu reunir essas duas paixões: a música por um lado e o teatro baseado no Pessoa. Pessoa é completamente incontornável para nós. Fico surpreendido porque acho que em Portugal não se tem a noção da dimensão que o Pessoa tem. Isto apesar de todas as homenagens. Para um francês teria inconcebível ter um poeta como o Pessoa e não o considerar (e fazer considerar aos outros países) uma das manifestações máximas da sua cultura. É impossível para um artista português não ver este precedente colossal que está antes de nós...

Foi o que fez. Na sua forma de expressão…
Como fiz, sim e não sou o primeiro. Um dos melhores romances do Saramago é sobre o pessoa.

Onde descobriu o texto que serve de base a O Sonho?
Eu descobri este texto através da edição da professora Teresa Rita Lopes. Ela tem um livrinho que editou na sequência dos seus trabalhos doutorais. Fez em França, no final dos anos 70, a sua tese sobre Pessoa como escritor dramático e em particular no contexto simbolista. E ela conseguiu reformar da arca uma série de textos incompletos dramáticos. Na sequência da tese de doutoramento publicou um livrinho em francês, em edição bilingue, do encadeamento de uma série de peças de teatro, incompletas. Esta é uma delas. Devo dizer, não querendo cometer nenhuma injustiça, que todas as edições subsequentes deste texto retomaram ipsis verbis a transcrição da Teresa Rita Lopes.

Mas não lhe bastou essa transcrição. Quis ter os manuscritos de Fernando Pessoa na sua mão. O que procurava mais?
Eu queria saber até que ponto é que aquele encadeamento, que é apresentado como uma peça de teatro, editado como Salomé, corresponderia ao encademento original pensado pelo Fernando Pessoa. Ou se pelo contrário era o encadeamento que a Maria Teresa, que é uma estudiosa pessoana mas tambénm uma escritora e uma mulher do teatro... Queria ter a certeza se aquele encadeamento era dela ou do Pessoa. Perguntei-lhe e ela disse “a maior parte do encadeamento é meu”... Então fui à procura para ver o que o Pessoa tinha, de facto, deixado. Encontrei um corpus textual extremanente concentrado, por um lado, e rico.

O que encontrou concretamente?
Duas fontes diferentes. Uma são as dactilografias. O Pessoa dactilografou uma sucessão de cenas que têm um encademento que se pode considerar lógico entre elas. São algumas páginas, não muitas... E depois tem uma série de manuscritos que nós sabemos, pelo texto, que se destinavam à Salomé, mas não sabemos onde se encaixavam. Muitos estão incompletos e inclusivamente há alguns que são até contraditórios com o resto da história. Há um manuscrito em que uma das aias pergunta a Salomé o que ela sonhou. Ela diz que sonhou que dançava para o pai num banquete e que o pai sugeriu que lhe pedisse o que ela quisesse e ela pedia a cabeça daquele que prenderam há dias... Ora essa é a história da Bíblia! E o interessante era onde quereria o Pessoa colocar esta versão bíblica... Uma versão bíblica em duas frases... Como é que a iria encaixar num sonho que não tinha nada a ver com isto... Eu fiz uma analepse... Coloquei as personagens a dormir depois do sonho, depois da tragédia e da morte do escravo, fiz uma analepse com um suposto sonho com que as fiz dormir... As flautas, que sempre sombrearam as vozes delas até aquele momento, a partir dali constituem a música da Salomé sem a palavra, ou seja, evocam o sonho dela. E quando elas acordam, perguntam uma à outra o que sonhaste? E contam este sonho que corresponde à versão bíblica. Mas não sabemos qual era o destino que Pessoa lhe iria dar. Aproveitei-o.

(continua na próxima semana)