Martin Scorsese volta a confrontar-nos com um fundamental princípio filosófico: a verdade não é um automatismo, muito menos uma transparência, mas uma construção — este texto foi publicado no Diário de Notícias (28 de Fevereiro), com o título 'Martin Scorsese na teia da realidade'.
O facto de vivermos numa cultura predominantemente televisiva reflecte-se na escassez de debates sobre cinema. Não falo de iniciativas para desfrutar e discutir cinema que, mal ou bem, continuam a existir. E não falo também, como é óbvio, do infantilismo da Net (onde as guerras anedóticas sobre os milhões de dólares dos filmes anulam o mais básico gosto cinéfilo). Falo, isso sim, de uma conjuntura simbólica em que, todos os dias, é recalcada uma componente essencial do mundo das imagens. A saber: como é que as imagens representam a realidade? E o que é isso de representar a realidade?
Com excepções mais ou menos importantes, as televisões expelem tal interrogação: querem ser vistas (e não discutidas) como um altar de verdade. Alguns jornalistas assumem-se mesmo como anjos tocados pela graça divina de representarem uma “transparência” inacessível ao comum dos mortais. Nesta conjuntura, não admira que um filme como Shutter Island, de Martin Scorsese, não consiga gerar um grande debate público sobre aquela que é a sua questão nuclear (aliás retomando de forma exemplar as componentes do romance homónimo de Dennis Lehane): como é que cada indivíduo elabora uma visão da realidade? Mais ainda: como é que tal visão nasce da complexa contaminação de experiências, memórias, palavras, imagens, evidências e fantasmas?
O problema, repare-se, pouco ou nada tem a ver com o juízo de valor que o filme nos possa suscitar. Para mim, trata-se de um fabuloso objecto de cinema, confirmando Scorsese, não apenas como um nome vital do cinema americano dos últimos 40 anos, mas também como um dos maiores criadores em actividade (em qualquer domínio artístico ou industrial). Em todo o caso, o problema que aqui tento descrever decorre da banalização do cinema como fenómeno “ligeiro”, tendencialmente fútil, redutível a um inventário de efeitos especiais e números de bilheteiras.
Sabemos também como, em tais casos, funciona a ideologia dominante: discutir tudo isso a pretexto de um filme que se apresenta como um thriller não passaria de uma grosseira pretensão intelectual. Apostado em destruir o prazer de pensar, esse cliché nasce de uma violentíssima ignorância: a de que Scorsese sempre trabalhou sobre modelos do cinema de massas e que Shutter Island, precisamente, nos remete para a tradição do film noir dos anos 40, um dos géneros mais populares de Hollywood e também um dos filosoficamente mais ricos e complexos.
Nada disto se alteraria se o filme de Scorsese fosse um objecto marginal e esotérico. Seja como for, vale a pena acrescentar que Shutter Island é o actual líder das bilheteiras americanas, facto objectivo, hélas!, que também não deu origem a muitas notícias. Há filmes cuja vida financeira é tratada como uma incontestável caução para as suas leituras; há outros que nem sequer têm direito a ser conhecidos através dos dados mais rotineiros do mercado.
O facto de vivermos numa cultura predominantemente televisiva reflecte-se na escassez de debates sobre cinema. Não falo de iniciativas para desfrutar e discutir cinema que, mal ou bem, continuam a existir. E não falo também, como é óbvio, do infantilismo da Net (onde as guerras anedóticas sobre os milhões de dólares dos filmes anulam o mais básico gosto cinéfilo). Falo, isso sim, de uma conjuntura simbólica em que, todos os dias, é recalcada uma componente essencial do mundo das imagens. A saber: como é que as imagens representam a realidade? E o que é isso de representar a realidade?
Com excepções mais ou menos importantes, as televisões expelem tal interrogação: querem ser vistas (e não discutidas) como um altar de verdade. Alguns jornalistas assumem-se mesmo como anjos tocados pela graça divina de representarem uma “transparência” inacessível ao comum dos mortais. Nesta conjuntura, não admira que um filme como Shutter Island, de Martin Scorsese, não consiga gerar um grande debate público sobre aquela que é a sua questão nuclear (aliás retomando de forma exemplar as componentes do romance homónimo de Dennis Lehane): como é que cada indivíduo elabora uma visão da realidade? Mais ainda: como é que tal visão nasce da complexa contaminação de experiências, memórias, palavras, imagens, evidências e fantasmas?
O problema, repare-se, pouco ou nada tem a ver com o juízo de valor que o filme nos possa suscitar. Para mim, trata-se de um fabuloso objecto de cinema, confirmando Scorsese, não apenas como um nome vital do cinema americano dos últimos 40 anos, mas também como um dos maiores criadores em actividade (em qualquer domínio artístico ou industrial). Em todo o caso, o problema que aqui tento descrever decorre da banalização do cinema como fenómeno “ligeiro”, tendencialmente fútil, redutível a um inventário de efeitos especiais e números de bilheteiras.
Sabemos também como, em tais casos, funciona a ideologia dominante: discutir tudo isso a pretexto de um filme que se apresenta como um thriller não passaria de uma grosseira pretensão intelectual. Apostado em destruir o prazer de pensar, esse cliché nasce de uma violentíssima ignorância: a de que Scorsese sempre trabalhou sobre modelos do cinema de massas e que Shutter Island, precisamente, nos remete para a tradição do film noir dos anos 40, um dos géneros mais populares de Hollywood e também um dos filosoficamente mais ricos e complexos.
Nada disto se alteraria se o filme de Scorsese fosse um objecto marginal e esotérico. Seja como for, vale a pena acrescentar que Shutter Island é o actual líder das bilheteiras americanas, facto objectivo, hélas!, que também não deu origem a muitas notícias. Há filmes cuja vida financeira é tratada como uma incontestável caução para as suas leituras; há outros que nem sequer têm direito a ser conhecidos através dos dados mais rotineiros do mercado.