sexta-feira, fevereiro 26, 2010

Scorsese: o desejo de verdade

MARTIN SCORSESE
Rodagem de "Shutter Island"

O realizador de Taxi Driver filmou mais uma saga sobre a imperfeição humana. De algum modo, Leonardo DiCaprio é o herdeiro de Robert De Niro — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 de Fevereiro), com o título 'A teia da verdade e da morte'.

Em A Última Tentação de Cristo (1988), Martin Scorsese filma Willem Dafoe como o filho de Deus que, embora não renegando o Pai, não pode deixar de formular uma hipótese de grande candura: e se eu não quiser aceder à dimensão divina, contentando-me com as imperfeições deste mundo? Em boa verdade, esse não era um tema especificamente religioso: a sua religiosidade é inerente a toda a obra do autor de sagas de purificação individual como Taxi Driver (1976), Touro Enraivecido (1980) e Bob Dylan: No Direction Homem (2005).
Depois de muitos anos com Robert De Niro, Scorsese encontrou em Leonardo DiCaprio o ambíguo prolongamento da mesma temática. Aos 35 anos, DiCaprio possui a gravidade de um herói clássico, preservando uma fragilidade juvenil que, em Shutter Island, lhe empresta uma comoção radical. Este é um filme filiado no cepticismo filosófico da grande tradição do film noir (Out of the Past, dirigido por Jacques Tourneur em 1947 foi um dos títulos que, durante a preparação, Scorsese mostrou a DiCaprio). A personagem central, mais do que decifrar um mistério, atravessa uma teia tecida por dois princípios cruéis: por um lado, o desejo de verdade é uma lei inelutável do ser humano; por outro lado, não é possível viver esse desejo sem que, em algum momento, enfrentemos a nitidez da morte. Daí que se aconselhe o espectador a não revelar os enigmas de tão prodigioso exercício de cinema, na certeza de que raras vezes um realizador nos interrogou de forma tão directa: afinal, como podemos definir o real?