A conjuntura mediática e comercial favorece uma cultura de fascínio beato pela "tecnologia". Por que preço? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (21 de Março).
Uma das consequências mais correntes, e também mais simplistas, da visão banalmente financeira do cinema é a sua redução a índices de receitas. Proliferam os números “grandes” dessas receitas, omitindo-se qualquer consideração sobre todos os outros (da produção à promoção e, mais recentemente, da reconversão das salas para a projecção digital). O cinema americano é o palco privilegiado de tal (des)informação, favorecendo um retrato triunfalista da produção que ignora, não apenas a sua diversidade, mas também os seus inevitáveis falhanços comerciais.
Escusado será dizer que não há nenhuma relação estável, muito menos racional, entre a vida económica de um filme e os juízos de valor que sobre ele possamos formular. O que se contesta é o efeito equívoco de uma certa megalomania “jornalística” que ignora a pluralidade do fenómeno cinematográfico. Por exemplo, o filme Green Zone (ainda inédito entre nós) que marca o reencontro de Paul Greengrass, da série “Bourne”, com o respectivo actor, Matt Damon: com menos de 20 milhões de dólares na semana de estreia nos EUA, Green Zone é um monumental falhanço económico, quanto mais não seja porque custou 100 milhões (o que quer dizer que se terá gasto pelo menos outro tanto na respectiva campanha publicitária). E que dizer de Visto do Céu, adaptação do best-seller de Alice Sebold [The Lovely Bones], dirigida por Peter Jackson (O Senhor dos Anéis) e recentemente lançada entre nós? Com uma receita global ainda abaixo dos 90 milhões, tendo custado 65, consegue uma performance comercial à beira do medíocre, sobretudo tendo em conta a sofisticação de meios e também o muito que foi investido no seu lançamento.
Visto do Céu é tanto mais sintomático quanto a sua própria concepção artística reflecte o mesmo tipo de visão delirante do trabalho cinematográfico. Estamos perante a abordagem de uma história fantástica (uma jovem assassinada que, num limbo existencial e moral, “contempla” a vida que deixou) marcada por uma integração meramente instrumental dos efeitos especiais: Visto do Céu é mesmo um caso exemplar do modo como a atracção “tecnicista” pode reinar, a ponto de esvaziar o labor específico da narrativa, isto é, a arte de contar histórias.
Quase sempre, os modernos efeitos especiais passaram a ser apresentados como uma receita “mágica” para a sedução espectacular do cinema. É um discurso que recalca o facto de os efeitos especiais não serem uma “proeza” do século XXI, mas sim um dado inerente à história do cinema desde os seus primórdios, em finais do século XIX, com Georges Méliès. Mais do que isso: tal discurso favorece a indiferença pelos filmes menos ricos, ou mais artesanais. No contexto português, conhecemos há décadas os seus danos colaterais: exprimem-se através de um paternalismo populista que menospreza, por princípio, o trabalho dos criadores.