sexta-feira, março 26, 2010

Memórias de Heath Ledger

Heath Ledger faleceu a 22 de Janeiro de 2008, durante a rodagem deste Parnassus. Como é que um filme sobrevive à morte do seu actor principal? — este texto foi publicado no Diário de Notícias (24 de Março), com o título 'O cinema e as suas maldições'.

Terry Gilliam é um criador de excessos. Mesmo naquele que me parece o seu melhor filme, As Aventuras do Barão Münchausen (1988), há um delirante gosto visual que tende a sobrepor-se a tudo o resto, limitando a consistência narrativa do seu trabalho. Já aconteceu essa consistência ser posta em causa por verdadeiras conjunturas “kafkianas”, a ponto de Gilliam ter abandonado um (primeiro) projecto de adaptação de Don Quixote, entre outras razões porque os cenários foram destruídos por uma tempestade, ao mesmo tempo que o protagonista, o francês Jean Rochefort, surgia com problemas de artrose que o impediam de... andar a cavalo (a odisseia está registada no documentário Lost in La Mancha, realizado em 2002 por Keith Fulton e Luis Pepe).
O caso de Parnassus: O Homem que Queria Enganar o Diabo ultrapassa tudo. De facto, não havia maneira “razoável” de compensar a falta de Heath Ledger. Na sequência da sua morte, a decisão de dar um salto em frente, integrando novos actores (incluindo estrelas como Johnny Depp e Jude Law), talvez só pudesse gerar este resultado: um objecto à deriva, incapaz de lidar com as maldições que sobre ele se abateram.
É verdade que Parnassus conserva o tema, essencial no universo de Gilliam, das aparências (uma companhia ambulante de teatro) como porta de entrada na vertigem de sonhos e pesadelos. Mas tratava-se de uma missão impossível: ficou a homenagem à memória de Heath Ledger, mas também a prova real de que a arbitrariedade dos factos não faz necessariamente uma narrativa onírica.